31 ago, 2016 - 18:13
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No dia em que o Senado se preparava para destituir a Presidente do Brasil, depois de uma semana intensa de julgamento no plenário, as ruas incendiaram-se, literalmente, em São Paulo. Centenas de pessoas protestavam contra o processo de destituição. As palavras de ordem: “Volta querida!”, “Fora Temer!”, “Não vai ter golpe!”. Cortaram estradas cortadas e incendiaram objectos. A polícia de intervenção disparou gás lacrimogéneo contra os manifestantes. Não foi a primeira vez que a saída de Dilma motivou manifestações, tanto de repúdio como de apoio.
Quem é esta mulher que mexe tanto com o sentimento dos brasileiros?
De “querida” a “terrorista”, já foi chamada de tudo. Dilma Vana Rousseff nasceu em Belo Horizonte há 68 anos, filha de uma família de classe média alta. O pai, búlgaro, Pétar Russév, adaptou o nome para Pedro Rousseff e mudou a sua vida quando conheceu a mineira Dilma Jane da Silva, de quem a futura Presidente herdou o primeiro nome. Do pai, herdou o gosto pelo activismo e pela leitura.
Com a mãe, em Belo Horizonte. Foto: DR
Teve uma infância feliz e tranquila ao lado dos dois irmãos na casa de Belo Horizonte, onde estudou em colégios particulares de freiras para meninas.
Interessou-se pelo socialismo durante a juventude, logo após o Golpe Militar de 1964, quando entrou no Colégio Estadual.
Na escola, que tinha turmas mistas, conheceu aqueles que a iriam despertar para a política. Entre eles estava Cláudio Galeno, com quem se alistou no Comando de Libertação Nacional (COLINA), movimento de esquerda de luta armada, e depois na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Três anos depois, casaria com Claúdio Galeno.
Com a família. Foto: DR
Dilma e Cláudio separaram-se durante o período em que estiveram na clandestinidade, altura em que a jovem militante conheceria Carlos Araújo, ex-guerrilheiro e ex-deputado gaúcho (ficaria conhecido mais tarde por desviar um avião para Cuba), por quem se apaixonou e com quem manteve um relacionamento de mais de três décadas. Dessa relação nasceu a sua única filha, Paula Rousseff Araújo, em 1976.
De “patricinha” a “terrorista”
Como faz questão de lembrar, a luta pelo fim da ditadura deixou-lhe marcas no corpo e na memória. Em 1970, foi presa na rua, em São Paulo, para choque e surpresa da sua família, que desconhecia esse lado de Dilma. Já há muito tempo que era vigiada pela ditadura, que a rotulara de subversiva.
A prisão, e, com ela, as sessões de tortura, duraram quase três anos. De Janeiro de 1970 a Dezembro de 1972, passou os dias nos porões da Operação Bandeirantes (OBAN) e do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Alguns críticos, no entanto, duvidam que alguém pudesse sobreviver a 22 dias seguidos de tortura, como relatam os “petistas”, e afirmam que a luta armada de esquerda no Brasil tinha o objectivo, não de implementar a democracia, mas de erguer uma ditadura de inspiração cubana.
Aos 22 anos, perante a justiça militar. Foto: DR
Ao ser libertada, Dilma voltou à casa da infância dez quilos mais magra para recuperar ao lado da família. Como consequência, desenvolveu hipertiroidismo e, depois, hipotiroidismo. Na ficha do DOPS ficou o rótulo: “terrorista”.
“Na vida a gente não sobe de salto alto”
No Rio Grande do Sul refez a vida junto de Carlos Araújo, ajudou a fundar o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e participou em várias campanhas eleitorais. De 1985 a 1988, durante a gestão de Alceu Collares à frente da prefeitura de Porto Alegre, foi secretária municipal da Fazenda, a que se seguiram os cargos municipais de secretária de Minas e Energia (até 2002) e presidente da Fundação de Economia e Estatística.
É em 2001 que decide filiar-se no Partido dos Trabalhadores (PT). Logo no ano seguinte, ajuda a formular o programa do governo de Luiz Inácio Lula da Silva para a área energética. Lula dá-lhe a tutela do Ministério das Minas e Energia e, mais tarde, um ainda maior voto de confiança quando a nomeia para ficar à frente da Casa Civil – a primeira mulher a fazê-lo – no advento do escândalo do “Mensalão” que colocou na rua José Dirceu.
Em 2010, a "mãe do PAC" (Programa de Aceleração do Crescimento) foi escolhida pelo PT para concorrer à eleição presidencial. Pioneira, foi graças a Lula que Dilma Rousseff se veio a tornar a primeira mulher Presidente do Brasil, além da primeira secretária da Fazenda e ministra das Minas. "Na vida a gente não sobe de salto alto”, diria.
O mau feitio suavizado com os anos
Dilma foi várias vezes acusada de ter um temperamento explosivo, nomeadamente na imprensa brasileira, que a encostou à parede por ter alegadamente “destratado” alguns colegas de pasta. Conta-se que “fez chorar” o presidente da Petrobrás, José Sérgio Gabrielli, depois de uma reprimenda por telefone.
“É verdade”, declarou Dilma. “Sou uma mulher dura cercada por ministros meigos.” Feminista desde a primeira hora, é conhecida por ter afirmado: “Eu acho interessante o facto de que a mulher, quando ela exerce um cargo com alguma autoridade, sempre é tachada de dura, rígida, dama de ferro ou qualquer coisa similar. E eu acho isso, de facto, um estereótipo. É um padrão, uma camisa de força que tentam enquadrar em nós, mulheres”.
Nem sempre, ainda assim, as suas saídas foram felizes. A internet está repleta de “memes” e piadas sobre a “Presidenta”, incluindo listas das suas gafe mais famosas. Desde os bodes importantíssimos de Tejuçuoca à “figura oculta” – “Sempre que você olha uma criança, há sempre uma figura oculta, que é um cachorro atrás, o que é algo muito importante” –, passando pelas citações de Montesquieu, a quem chamou “o europeu muito importante, junto com Monet”.
Como dizem os brasileiros, o “ar de braveza” foi-se desvanecendo com as rugas. Em 2008, começou a submeter-se a sucessivas operações plásticas para melhorar a aparência (facto que foi aplaudido no Brasil). As linhas de expressão, as olheiras e o olhar carregado da juventude desapareceram e Dilma surgiu com um penteado mais curto (e definitivamente mais moderno).
As mudanças não foram só físicas. Aprendeu, com a ajuda do mentor Lula, a comunicar melhor com o povo. De vez em quando, segundo a imprensa, ainda escorrega no discurso técnico, mas compensa com o sorriso, que aparece mais frequentemente.
A Presidência
Após um período difícil, em que se submeteu a quimioterapia para tratar um linfoma, ascendeu em 2011 ao mais alto cargo da nação. No discurso de tomada de posse, jurou que iria erradicar a pobreza e mudar o sistema tributário. “Eu posso não ter experiência de governar como eles governaram com estagnação, desigualdade e desemprego. Agora, governar gerando emprego, distribuição de renda, tirando 24 milhões da pobreza e 31 milhões elevando à classe média, eu sei muito bem fazer”, declarou.
Disse publicamente que preferia se tratada por “Presidenta”, mas nunca chegou a haver uma posição oficial sobre o assunto. A decisão deu trabalho aos linguistas e animou discussões.
Nos primeiros dois anos do mandato, manteve-se em altas nas sondagens, com um índice de aprovação entre os 48% e os 70%, superando mesmo Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso.
Em Maio de 2012 anunciou na televisão nacional a criação do programa "Brasil Carinhoso", com o objectivo de tirar da miséria absoluta todas as famílias com dependentes até 15 anos de idade. No mês seguinte, aprovou uma lei que criou mais de 70 mil cargos a serem preenchidos até 2014 na área da educação. Em Agosto do mesmo ano, aprovou a lei que destinou metade das vagas nas universidades federais a estudantes do ensino público.
Nas temáticas sociais, Dilma Rousseff defende a possibilidade de abortar em gestações que põem em risco a vida da mãe ou são o resultado de violação, o que já lhe valeu duras críticas por parte da Igreja Católica e das igrejas evangélicas no Brasil. É uma questão em que tanto é atacada por ser demasiado progressiva como por ter recuado, como é o caso de alguma imprensa que recorda a luta de Dilma pela legalização do aborto na sua juventude.
Quanto ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, Rousseff é contra, embora apoie as uniões civis. “Acho que a questão do casamento é religiosa. Eu, como indivíduo, jamais me posicionaria sobre o que uma religião deve ou não fazer. Temos que respeitar”, já declarou.
O segundo mandato e o princípio do fim
No primeiro dia de 2015, Dilma tomou posse pela segunda vez. Enfraquecida, a braços com uma crise económica e política, foi tomando medida impopular atrás de medida impopular – austeridade fiscal, regras mais apertadas nas reformas, aumentos na luz, transportes e gasolina; cortes em todos os sectores – em Fevereiro, tinha caído para 23% nos índices de aprovação.
Em Março, no Dia da Mulher, várias cidades do Brasil foram palco de “panelaços”, manifestações de contestação pelos direitos das mulheres. Dias depois, uma manifestação de apoio à Presidente tornou-se uma batalha civil com os manifestantes contra o governo a marcarem protestos para o mesmo dia. O Brasil começou a ferver e Dilma estava no centro da tempestade.
No fim do ano, a 2 de Dezembro, Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, acolheu um dos pedidos de destituição contra a chefe do Governo. O gesto foi acolhido no diário nacional “Folha de São Paulo” como uma retaliação contra o PT por parte de Cunha (que viria mais tarde, ele próprio, a ser afastado). As manifestações e protestos contra e a favor sucederam-se quase diariamente.
Em Março deste ano, o “Folha” divulgou escutas com a revelação de um “pacto”: o processo de destituição teria como objectivo oculto travar o avanço das investigações à Operação Lava Jato. A conversa entre Romero Jucá e Sérgio Machado referia que o governo do vice-Presidente Michel Temer seria feito por um "pacto nacional com o Supremo, com tudo".
A 29 de Agosto, Dilma Rousseff compareceu perante o Senado. Defendeu-se acerrimamente durante 14 horas contra o afastamento. Declarou que foi ao Senado "olhar directamente nos olhos” dos que a julgarão.
"Não cometi os crimes dos quais sou acusada injusta e arbitrariamente. Hoje o Brasil, o mundo e a história nos observam. E aguardam o desfecho desse processo de 'impeachment'", disse, utilizando a palavra “golpe”. "Um golpe que, se consumado, resultará na eleição indirecta de um governo usurpador”, afirmou.
No final do discurso de abertura da sessão, antes das perguntas do plenário que levariam o julgamento a durar pela noite dentro, rematou: "Não tenho dúvida, que também desta vez, todos nós seremos julgados pela história".