01 out, 2015 - 13:07 • João Carlos Malta
Celeste (nome fictício) tem 65 anos. Tem duas netas. Estão no altar do seu coração. Quase só fala delas. Há cinco anos entrou no hospital com pneumonia e saiu de lá com o diagnóstico de VIH (Vírus da Imunodeficiência Humana). O mundo partiu-se em dois. O dela e o dos outros. No meio o medo. Muito medo.
“Vivo um drama. Tenho muitos pesadelos. Acho que as pessoas olham e vêem logo tudo. Temo que as minhas filhas me vejam a tomar o comprimido e que perguntem o que é aquilo. É muito difícil. Tenho muito medo que não me deixem ver as minhas netas”, relata a sexagenária à Renascença.
Assim que soube que o VIH vivia com ela e dentro dela, primeiro, Celeste viu o chão a desaparecer-lhe dos pés. Depois veio o choque. A seguir, começou a construir uma prisão (interior), em que as grades ficaram cada vez mais apertadas. “Sei que há mais gente como eu, mas uma pessoa tem medo. Não dá para falar sobre isto com ninguém. Nem pensar”, remata.
Segundo um levantamento feito em 2013, um em cada três novos casos de diagnóstico da doença é feito em pessoas com mais de 50 anos. A reacção de Celeste não é única. Está longe de o ser. Filomena Aguiar, presidente da Fundação Portuguesa a Comunidade Contra a Sida (FPCCS), caracteriza o primeiro impacto de “muito má”. A doença era até há pouco tempo considerada mortal, mas a situação alterou-se. Não à mesma velocidade que a informação, ou a falta dela.
“O acompanhamento psicológico tem de ser mais contínuo do que noutras faixas etárias, porque as pessoas não conseguem aceitar que estão infectadas. Se nas gerações mais jovens, o VIH é ainda um estigma muito grande, imagine-se nestas faixas que não tiveram acesso a campanhas como os mais jovens. E se a própria idade isola as pessoas, estando infectadas ainda mais”, defende.
Um homem de sempre que deixa marca para sempre
Celeste também se afasta dos outros. Tem um trauma em forma de homem. “Vivia com o meu marido, mas ele deixou-me mais ou menos por essa altura. Nem percebi bem porquê. Ele começou a beber e saiu de casa”, relembra.
Foi único e deixou-lhe uma marca eterna. “Não o perdoo. Estragou-me a vida. Agora tenho isto para sempre. A médica disse que foram as relações sexuais. Eu nem sei usar o preservativo”, confidencia.
O especialista em VIH Francisco Antunes explica os “porquês” de esta doença estar cada vez mais disseminada em faixas etárias mais altas. Ao contrário do que acontecia no passado (a idade de diagnóstico aumentou 13 anos desde 1990).
“Os mais idosos têm pouca percepção sobre a transmissão do vírus e têm comportamentos de risco acrescidos nesta população”, diz o especialista. “É muito importante referir que estes indivíduos têm muita dificuldade em usar o preservativo”, acrescenta.
Francisco Antunes fala ainda para dentro da comunidade médica e de como a mesma lida com a questão. “Alguns meus colegas, médicos de família, subestimam o risco nesta população, tanto da transmissão por vírus da sida como da actividade sexual nesta faixa etária. Não discutem os problemas. Tem de se considerar que há um novo paradigma relacionado com os novos casos relacionados com o VIH, com mais de 50 anos”, sintetiza.
O especialista diz ainda que no grupo acima dos 50 anos a maior prevalência de novos casos é entre os homens. Mas ressalva que “o número de mulheres também está a aumentar”.
Afectos? “Já nem penso nisso”
Luís (nome fictício) diz que gostava de saber como lhe foi parar à ficha clínica o diagnóstico de VIH. Mas não sabe. “Mesmo nas relações [sexuais] sempre me preveni. Não sei como é que isto aconteceu, mas o que é facto é que aconteceu. Agora como e quando é que eu não sei.”
Foi através das relações sexuais, garante-nos uma das médicas que o acompanha. Luís, de 72 anos, pertence ao mais vasto grupo de infectados com a doença: homens heterossexuais.
Um homem que nunca tinha sequer pensado na doença teve uma primeira reacção instintiva. "Isto é o fim da vida, não é?", perguntou à médica que o acompanhou na fase aguda de internamento no hospital. Uma pneumonia fê-lo perder mais de 30 quilos e ficou em pele e osso.
O VIH não é o fim da vida. O vírus deixou de ser considerado uma patologia mortal e passou ao grupo das doenças crónicas. “O diagnóstico precoce permite uma sobrevida destas pessoas idêntica à da população em geral”, garante Francisco Antunes.
Em Portugal, 58% dos novos casos, segundo os especialistas, são diagnosticados em fase tardia. “A perspectiva de vida está ligada ao diagnóstico tardio. Apesar de serem muito bem tratadas, o sistema imunitário destas pessoas pode já não ser suficiente”, lembra o especialista.
Luís diz que apesar do medo inicial, agora vive com o VIH sem receios. “Eu ando bem, nem penso na doença. Tomo a medicação certinha. Faço a minha vida normal. Ainda trabalho e tudo”, vinca.
Tudo normal? Nem tudo. Por partes. Só ele e os médicos sabem o segredo que ele esconde. “Nunca contei a ninguém”. Porquê? “Foi uma opção minha”, diz. Tinha medo? “Talvez por isso. Ando a pensar em algum dia partilhar isto com alguém. Ainda ando a pensar”, chuta Luís para o futuro.
Mas há algo que nunca mais ficou na mesma: os afectos. “Já não penso nisso”, começa por dizer. Depois, abre margem à excepção. “Mas quando o faço, não vou contaminar ninguém. Tenho a certeza de que desde que sei que tenho a doença nunca contaminei ninguém”, sublinha. A presidente da Fundação Portuguesa a Comunidade Contra a Sida confirma que esta é uma história que se repete muitas vezes. “As pessoas isolam-se, não querem mais ter relações íntimas, nem relações mais próximas”, defende.
Viagens da vergonha
Há ainda a vergonha. É de tal forma grande que obriga a viagens enormes. “Tenho pessoas do Norte a ser assistidas no Sul, para não serem reconhecidas”, ilustra Filomena, que lidera um projecto direccionado a idosos que actua de Norte a Sul, sobretudo em meios rurais, para levar os medicamentos necessários ao controlo da doença. Mas não chega a todos. Há ainda muitos casos dramáticos.
“Há uma senhora que vive no campo e tem de fazer 90 quilómetros todos os meses para vir buscar os medicamentos”, diz Filomena, que defende que para evitar estes problemas a distribuição gratuita devia ser em maiores quantidades e não numa base mensal.
A descoberta tardia da doença traz consigo um novelo de potenciais problemas associados. O médico Francisco Antunes relata que alguns dos casos chegam ao consultório com 20 a 30 anos de incubação, já com problemas cardiovasculares, ou insuficiências renais no diagnóstico. O mesmo especialista diz que metade dos casos já são diagnosticados tardiamente e 25% já são descobertos quando o vírus se transformou em SIDA.
“Temos de adaptar a terapia à idade e aos retrovíricos que se podem utilizar. Temos de mudar o tratamento, relativamente a toxicidade dos medicamentos e pensar nas interacções medicamentosas, lembra.
No meio hospitalar, o diagnóstico precoce tem ainda algumas barreiras. “Os médicos não perguntam em relação à vida sexual das pessoas. As pessoas não estão habituadas a falar disso. Pensa-se que é demasiado íntimo”, lembra a presidente da FPCCS.
O tema pode até não estar na conversa das pessoas no dia-a-dia, mas para Celeste salta em demasia para o quotidiano. Antes nem pensava na doença. Estava lá longe. Agora, “abro uma revista, ligo a televisão e falam de sida e parece que as coisas vêm para cima de mim”. “É uma informação que não quero.”