11 fev, 2016 - 08:30 • Pedro Rios , Teresa Abecasis (com Joana Bourgard)
“A água ontem estava preta. De vez em quando aparece assim, mesmo negra, negra, negra.” Júlio Letra, 75 anos, habituou-se a ver a água do Tejo com cores e cheiros pouco desejáveis, sobretudo para quem, como ele, vive da pesca da lampreia, do sável e dos outros bichos que o rio dá.
À nossa frente há uma ilha de terra e ramos secos, à nossa esquerda uma pequena marina de barcos de recreio e um restaurante cujo arroz de lampreia sacia quem visita Escaroupim, aldeia avieira de Salvaterra de Magos. A povoação preserva muitas das casas de madeira feitas nos anos 1930 por pescadores da Marinha Grande que se deslocavam para o Tejo no Inverno à procura do sável.
Na margem do rio, Júlio Letra e António “Simãozinho” traçam o diagnóstico: “As ETAR e as fábricas largam a poluição para o Tejo e depois aparece aqui em baixo”. Estamos a 70 quilómetros da foz do rio e a 170 de Vila Velha de Rodão, junto a Espanha, cuja zona industrial surge em quase todos os discursos como principal culpada do estado do Tejo.
Nada disto “é de agora”, informa António, mas nos últimos meses o problema tornou-se mais visível, denunciam os vários movimentos – uns antigos, outros mais recentes – de defesa do Tejo. 2015 foi um ano negro, diz Samuel Infante, dirigente nacional da Quercus, associação ecologista que elegeu a poluição no Tejo como um dos piores factos ambientais do ano passado. E em 2016 já surgiram mais denúncias de descargas ilegais no Tejo.
“O peixe, quando apanha água de cima, essas impurezas, vai todo para baixo. Não se apanha mesmo nada”, diz Júlio Letra, preocupado com a época da lampreia que se avizinha.
António olha para o rio e desfia um rol de exemplos de maus-tratos: um batelão deixado no fundo do rio com óleo a correr; extracções de areia; descargas que redundam em centenas de peixes mortos. Nada que possa esmorecer os “ciganos do rio” que Alves Redol imortalizou em “Avieiros” – é António que lembra o romance de 1942. Porque “a gente tem de pescar”.
“Neve negra”
A Agência Portuguesa do Ambiente (APA) confirma o que se diz no terreno. “No segundo trimestre de 2015, verificou-se um agravamento dos problemas de poluição no rio Tejo – e naturalmente de denúncias”, refere, em resposta escrita enviada à Renascença. Em causa está a qualidade e a quantidade da água. A “fraca pluviosidade” e as “temperaturas elevadas” que caracterizaram o ano passado contribuíram para a situação. “A redução dos caudais na rede hidrográfica tem um potencial elevado de promover a degradação da qualidade da água por via da concentração (ou, por outro lado, a perda do efeito de diluição) dos efluentes descarregados” para o rio.
Samuel Infante, dirigente nacional da Quercus, acrescenta outro factor: “Espanha não cumpre a Convenção de Albufeira e não deixa passar água nem na altura adequada, nem nas quantidades que estão convencionadas, o que faz com que haja uma concentração dos poluentes.”
Arlindo Marques, presidente do movimento SOS Tejo, chama “neve negra” à espuma que nos últimos tempos, com alguma regularidade, desce o rio. Em Ortiga, no concelho de Mação, e noutros pontos do rio, é habitual vê-lo de máquina de filmar em punho a documentar estes episódios de poluição.
Diz que já estragou algumas nas suas andanças nas margens do rio. Mas os prejuízos são compensados: “Conseguimos fazer chegar informação às pessoas. Antigamente, falava-se muito, mas não havia as imagens.” Todas as semanas há novos vídeos e fotografias de alegadas contaminações do Tejo a circular no Facebook.
O problema agravou-se nos últimos “quatro ou cinco anos”, diz o ambientalista de Ortiga, que culpa algumas das empresas de Vila Velha de Rodão. Garante que fazem descargas ilegais à noite ou em datas como a passagem de ano – momentos em que a fiscalização tem menor capacidade de resposta. “A água vem com um cheiro a químico horrível.”
“O peixe não é parvo”
Arlindo leva-nos à garagem de Manuel Pires “Ti” Fontes. Um quadro na parede ostenta algumas quadras escritas pelo antigo construtor de barcos. A primeira: “Eu nasci em Ortiga/ O Rio Tejo me deu o sêr/ Aqui fiz a minha vida/ E aqui eu quero morrer”.
“Ti” Fontes, hoje com 89 anos, construiu três centenas de picaretos, barcos típicos do Tejo. Aprendeu a arte com o pai. Nas paredes há diplomas e notas de reconhecimento público à sua actividade. Guarda com rigor quase museológico pedaços desses tempos – mostra-nos uma planta de um picareto, num pequeno cartão. Alguns barcos, mais longos, serviam para levar mercadorias – plantas, ovelhas – de margem para margem.
“Eu faço muita coisa”, diz, a rir-se. Faz ou fazia bóias, “cestulhos” de verga que carregavam o peixe, balanças (o peixe é preso pelas guelras numa das pontas da balança, o peso é colocado na outra).
“2015 foi dos piores anos. Noutros tempos, aí há 20, 30 anos, éramos riquíssimos em peixe – não éramos ricos, éramos riquíssimos! Ali naquela zona chegaram a andar 13 barcos a apanhar o sável”, diz-nos, sentado num canto da sua garagem, com janela voltada para um Tejo parco em água. “Todos os dias olho para ele e, sabendo como ele era e como ele está agora, correm-me as lágrimas.”
Para “Ti” Fontes, já nem o peixe sabe ao mesmo. “No ano passado comprei um peixe, uma saboga. Gosto muito daquele peixe assado. Não gostei, não sabia ao que era”, conta. Prometeu a si mesmo não voltar a comer peixe do Tejo. “O peixe não é parvo: chega ao rio e vê que a água não lhe serve e vem para trás.”
No restaurante A Lena, no apeadeiro da Barragem de Belver, a qualidade e a quantidade do peixe são motivo de preocupação. “Começou a falar-se nisto do Verão [de 2015] para cá. Começou a faltar a água, apareceram uns peixes mortos e começou a ver-se a água com muita espuma. A água está muito escura”, descreve Francisco Pinto, dono d’A Lena e pescador.
“No Verão era uma coisa por demais, era quase um esgoto a céu aberto. E isso tem-se reflectido também na venda do peixe”, diz. “Apesar de terem analisado o peixe, de dizerem que se pode comer à vontade, as pessoas estão sempre com um pé atrás quando vêem como está a água.”
Entre Mação e Vila Velha de Rodão tem havido pouca pesca, afirmam pescadores, ambientalistas e donos de restaurantes. Também os autarcas têm falado do problema. "O peixe não existe e quando existe está mais morto do que vivo”, lamentou o presidente da Câmara de Gavião, José Pio, numa audição parlamentar dedicada à poluição do Tejo. Na mesma audição, o autarca de Mação, Vasco Estrela, disse que os problemas têm-se vindo a agravar. “Vamos ter brevemente o festival da lampreia e tememos a má imagem que este evento possa ter”, lamentou.
Henrique Cabral, director e coordenador científico do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, faz “zoom out” e aponta melhorias na qualidade das águas superficiais em Portugal.
No Tejo, olhando para as “actividades legais e licenciadas”, “tem havido uma melhoria”, fruto de uma malha legislativa mais apertada e da criação de sistemas de tratamento de resíduos domésticos. Mas há “situações muito graves”: da poluição “difusa”, “difícil” de combater, gerada pela agricultura às descargas ilegais das indústrias.
“Compensa até certo ponto fazer essas ilegalidades porque a probabilidade de se ser punido é relativamente baixa.”
Mais denúncias
A Agência Portuguesa do Ambiente garante que está a fazer o seu trabalho. Em 2015, avançou com fiscalizações que resultaram em “autos de notícia por contra-ordenação”.
Entre as “potenciais fontes de poluição” estão a ETAR da empresa Queijo Saloio, de Abrantes; a ETAR/fossa de Ortiga I e II, das Águas de Lisboa e Vale do Tejo, a fossa do parque de Campismo de Ortiga, propriedade da câmara local; e as empresas Celtejo e Centroliva, a par da fossa da zona industrial, em Vila Velha de Ródão.
Todas as entidades foram notificadas para resolverem os problemas detectados, com excepção da Celtejo, cujo plano de investimentos, actualmente em análise, deverá incluir “medidas que permitam melhorar a qualidade dos efluentes”.
Na semana passada, a Inspecção-Geral do Ministério do Ambiente deu à Centroliva – onde tem sido “reiteradamente detectada a prática de contra-ordenações ambientais muito graves” – 30 dias para adoptar medidas para que possa continuar a exercer actividade.
Nada que surpreenda o ambientalista Samuel Infante, habituado a percorrer as imediações da empresa de processamento de bagaço e produção de energia. Nas traseiras da Centroliva passa a ribeira do Açafal, afluente do Tejo. A água é turva, cheia de espumas, o cheiro nauseabundo e a vegetação mostra todos os sinais de estar queimada por químicos.
“É uma ribeira que está praticamente morta”, critica Samuel Infante. “Tem havido descargas sucessivas, um acumular de situações, algumas com vários anos, e que este Verão [de 2015] atingiram um pico como nunca vimos. Ao navegarmos de barco parecia que estávamos a navegar em cima de manteiga – havia uma espuma, uma gelatina com mais de quatro centímetros de espessura.”
Samuel Infante diz que muitas empresas não pagam as multas. “Alguma coisa não está a funcionar bem, é preciso ver o que está a acontecer. Parece-nos que o crime compensa”, atira.
Se a situação não melhorar, a Quercus admite avançar para os tribunais para forçar a suspensão de licenças. “Indústrias que têm milhões de lucro por ano têm que cumprir a legislação, têm que investir em melhorias das tecnologias para tratar os efluentes líquidos e gasosos”, defende.
É no Cais das Colunas, na foz do rio, que encontramos Paulo Constantino, porta-voz do movimento proTEJO (aderiu em 2009, revoltado com os baixos caudais). “A imagem que tenho do Tejo não tem comparação com a de há dez anos”, garante. Mas o activista acredita que ainda há tempo para “mudar esta face negra que o Tejo tem hoje” – haja “vontade política”.
Paulo Constantino, que se lembra dos mergulhos que deu no Tejo em criança, tem um sonho: “Devolver o rio às populações e vivê-lo com a alegria com que o vivíamos antigamente”.