30 ago, 2022 - 10:00 • Marta Pedreira Mixão
A ministra da Saúde apresentou a sua demissão ao primeiro-ministro por entender que "deixou de ter condições" para se manter no cargo. Marta Temido iniciou funções como ministra da Saúde em outubro de 2018, sucedendo a Adalberto Campos Fernandes.
Durante os mandatos, esteve no centro da gestão da pandemia, que começou em 2020, mas também esteve no centro de algumas polémicas. O encerramento dos serviços de urgência de obstetrícia em vários hospitais por falta de médicos para preencher as escalas pressionou a tutela.
Em março de 2020, foram confirmados os primeiros casos de covid-19 em Portugal. Desde então, o Ministério da Saúde viu-se forçado a assumir o protagonismo no combate à pandemia. Consequentemente, Marta Temido acabou por alcançar bastante notoriedade, tornando-se um dos “rostos” mais conhecidos dos portugueses devido à pandemia.
Lado a lado com a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, e com o coordenador da task force da vacinação, o militar Gouveia e Melo, a ministra procurou gerir a resposta a seis vagas pandémicas, que insistiam em realçar as fragilidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a falta de recursos humanos.
Nos primeiros dois anos, Portugal chegou a ser apontado como um exemplo mundial no combate à pandemia, tanto em medidas de prevenção, como em referência às taxas de vacinação contra a covid-19. Contudo, as
tensões com os representantes dos profissionais de saúde, que acusavam a
ministra de falta de diálogo, ficaram latentes, acabando agora por voltar à ordem do dia.
Em outubro de 2018, Marta Temido afirmava, em entrevista à TSF e "Diário de Notícias", que não iria negociar com os enfermeiros dos serviços de cirurgia que se encontravam em greve.
“Isso [negociar com os sindicatos] nem sequer seria correto para com as estruturas que decidiram dar-nos o benefício de continuar à mesa e a negociar connosco, portanto, isso estaria a privilegiar, digo eu, o criminoso, o infrator.”
Depois de alvo de várias críticas em relação às suas declarações a ministra a contactou a bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, pedindo desculpas aos profissionais de saúde e salientando que nunca teve intenção de chamar “criminoso” àqueles profissionais.
Numa audição na comissão parlamentar, a 12 dezembro de 2018, a ministra comunicou que a parceria público-privada (PPP) do Hospital de Braga ia terminar por “indisponibilidade definitiva” do Grupo Mello para prosseguir a concessão e que, consequentemente, o Hospital ia voltar à esfera do SNS.
Marta Temido afirmou que não tinha sido lançado um novo concurso para a gestão público-privada e não daria tempo de concluir o processo até agosto de 2019 e, segundo a ministra, o gestor privado não tinha interesse no prolongamento do contrato.
Restavam assim duas hipóteses: “o regresso à esfera pública ou a continuação em condições excecionais do atual modelo de gestão”, referia no Parlamento.
Contudo, o Grupo Mello, desmentiu a informação, garantindo que estava, “desde o primeiro momento, disponível para o prolongamento do contrato de gestão da parceria público-privada do Hospital de Braga, dentro do atual modelo contratual, desde que esclarecidas as condições de execução do contrato e da sustentabilidade financeira da parceria”.
Em abril, foi conhecida a decisão do Governo que acabou por desistir definitivamente de lançar um novo concurso e o hospital, que estava gerido em regime de PPP, voltou à esfera do SNS.
A polémica das PPP prolongou-se com a apresentação da nova Lei de Bases, quando a ministra anunciou que, embora o Governo quisesse privilegiar a gestão pública dos hospitais, admitia “exceções, como as PPP, acordos de cooperação ou outro tipo de contratos” se fosse “necessário”. Os partidos à esquerda mostraram-se contra, pois não queriam referência a entidades privadas na gestão da saúde.
Posteriormente, o grupo parlamentar do PS apresentou uma proposta para que as PPP tivessem um caráter temporário e “supletivo”, sendo necessária uma argumentação “devidamente fundamentada” para se estabelecerem.
Pouco depois de ter tomado posse, Marta Temido enfrentou uma greve
de enfermeiros que reivindicavam a valorização da carreira e que levou
ao cancelamento de milhares de cirurgias programadas nos principais
hospitais do país.
Na altura, Marta Temido classificou a greve como “cruel”, alegando que
se virava “contra os mais fracos”, os utentes que viram adiadas as suas
cirurgias que estavam programadas.
Em abril de 2019, Marta Temido enviou para a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) um despacho a determinar uma sindicância à Ordem de Enfermeiros (OE), o que a bastonária considerou "uma atitude persecutória nunca antes vista".
O pedido deu-se depois de a governante ter enviado para Procuradoria-Geral da República um alerta sobre a Ordem e a alegada relação com a “greve cirúrgica”.
A 25 de novembro de 2021, depois dois anos marcados pelo combate à pandemia de covid-19, período durante o qual Marta Temido surgia como um dos governantes com maior popularidade, novas declarações da ministra, na comissão parlamentar de saúde sobre 'Dificuldades que o Centro Hospitalar de Setúbal', reavivavam a polémica.
Questionada sobre os motivos pelos quais os médicos não se fixavam no Serviço Nacional de Saúde (SNS)], a ministra afirmava: “É bom que todos nós, enquanto sociedade, e isto envolve várias áreas, pensemos nas expectativas e na seleção destes profissionais. Porque, porventura, outros aspetos como a resiliência são aspetos tão importantes como a sua competência técnica. Estas são profissões, de facto, que exigem uma grande capacidade de resistência, de enfrentar a pressão e o desgaste e temos que investir nisso.”
As palavras da ministra geraram críticas quase imediatas e deram lugar a um novo pedido de desculpas. Em declarações aos jornalistas, Marta Temido tentou justificar: “Não disse aquilo que se refere que disse. Não disse em momento nenhum que é necessário recrutar profissionais mais resilientes. Disse que é necessário que todos façamos um investimento em mais resiliência, sobretudo quem trabalha em áreas tão exigentes como as da saúde. Se causei uma má interpretação, peço desculpa por isso. Genuinamente, do fundo do coração.”
No passado mês de maio, o "Público" noticiava que novos critérios de avaliação nas Unidades de Saúde Familiar modelo B (USF-B) incluíam uma proposta que sugeria que médicos de famílias com utentes que fizessem aborto voluntário poderiam vir a ser penalizados .
A alteração previa que o respetivo ato médico passasse a ser tido em conta no índice de planeamento familiar nas mulheres em idade fértil, sendo que esse índice seria utilizado para calcular uma componente remuneratória das equipas das USF-B.
As críticas multiplicaram-se e, no dia seguinte, no Parlamento, um grupo de cinco deputados socialistas dirigiu-se à ministra da Saúde, questionando se considerava aceitável a adoção do respetivo critério. O texto do grupo de deputados citava também a própria ministra, numa declaração proferida no Parlamento, sobre o direito das mulheres de recorrerem à interrupção voluntária da gravidez.
Num comunicado de resposta, a ministra informou os deputados de que o grupo de trabalho não iria incluir o critério em causa, afirmando que os indicadores são “suscetíveis de leituras indesejáveis”. O gabinete da ministra pediu ainda “desculpas a todas as mulheres que se sentiram ofendidas com esta proposta”.
Vários grupos de saúde privados, entre os quais a rede CUF do grupo Mello Saúde, o grupo Luz Saúde e o grupo Lusíadas, anunciaram em fevereiro de 2019 que iriam abandonar a ADSE. Como consequência, cerca de 1,2 milhões de beneficiários ficariam com menos alternativas ao setor público.
Em causa estaria o facto de a ADSE ter exigido aos grupos privados o pagamento de 38,8 milhões de euros por excessos de faturação entre 2015 e 2016, os privados, porém, alegaram que “a ADSE pretende ter o direito de reduzir retroativamente os preços a que os serviços foram prestados aplicando a posteriori o preço mínimo praticado”.
A ministra reagiu, afirmando que “Não pactuaremos nunca com qualquer chantagem de onde quer que ela venha e é evidente que utilizaremos todos os meios que ao nosso dispor existem, como já o fizemos relativamente a outros temas, para defender os beneficiários da ADSE”. Os privados acabaram por ficar na ADSE, com garantia de que as regularizações retroativas iriam acabar.
Recentemente, em conferência de imprensa realizada após a
reunião do Conselho de Ministros, Marta Temido defendeu que “o facto de
termos um número de médicos em determinadas especialidades, que é
insuficiente para a rede de prestação de cuidados de saúde que hoje
temos – insuficiente e, em termos etários, desadequado daquilo que
precisamos de garantir –, não é o resultado de uma escolha de hoje,
ontem ou do ano passado”, disse, reiterando que se tratava do “resultado
de uma escolha que foi feita há várias décadas, nos anos 80”.
O polémico Estatuto do SNS, publicado em Diário da República, conforme previsto na Lei de Bases da Saúde publicada em 2019, foi outro momento que marcou a passagem da ministra pelo Governo. O estatuto pretende clarificar a relação entre os vários atores do sistema de saúde e prevê também mais organização e autonomia de funcionamento e maior motivação dos profissionais do setor, bem como a criação de uma direção executiva para a gestão do SNS. Este novo estatuto, que está em fase de regulamentação e que vai substituir o atual em vigor desde 1993.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, promulgou o estatuto, mas não deixou de salientar dúvidas quanto à criação da figura de diretor executivo do SNS.
Os serviços de obstetrícia e ginecologia encontram-se em rutura há vários meses, com médicos internos a ultrapassarem o trabalho extraordinário, mas desde junho que esta crise tem vindo a agravar, com as urgências de vários hospitais a anunciar o fecho durante horas ou mesmo dias. Este período foi marcado por quatro situações:
A 9 de junho, uma grávida deslocou-se ao Hospital das Caldas da Rainha, contudo, a urgência obstétrica do hospital estava encerrada ao CODU/INEM por falta de médicos. Apesar da realização de uma cesariana de emergência, o bebé acabou por morrer. O caso gerou a atenção mediática sobre as urgências desta especialidade e a administração do Centro Hospitalar do Oeste (CHO) e o Governo admitiram "constrangimentos" com as escalas dos médicos.
A 28 de julho, uma mulher, de 41 anos e com uma gravidez considerada de risco, perdeu o bebé depois de fazer 100 quilómetros até às urgências do Hospital de Santarém, uma vez que a Urgência de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de Abrantes estaria fechada.
Mais de dois meses depois, a 22 de agosto, uma grávida atravessou de 26 anos no distrito de Setúbal, residente na Amora, concelho do Seixal, atravessou três distritos para dar à luz, já que os hospitais de Setúbal e Lisboa estavam indisponíveis para atender a mulher devido à falta de médicos. A grávida acabou por ser transportada de madrugada ao Hospital de Santarém, mas uma vez que esta unidade iria deixar de ter anestesista a partir das 8h00, a mulher foi depois transferida para o Hospital das Caldas da Rainha (distrito de Leiria), onde a criança acabou por nascer.
O mais recente caso tratou-se de uma mulher de 34 anos, grávida de 31 semanas, que morreu no último sábado, em Lisboa, depois de ter sofrido uma paragem cardiorrespiratória de 17 minutos durante a transferência de ambulância de Santa Maria para São Francisco Xavier, porque o primeiro hospital não tinha vaga no Serviço de Neonatologia.
A situação levou o Governo a criar a Comissão de Acompanhamento
da
Resposta em Urgência de Ginecologia/Obstetrícia e Bloco de Partos,
coordenada pelo médico Diogo Ayres de Campos. Contudo, as dificuldades
mantêm-se em vários hospitais ao longo das últimas semanas.
A demissão da ministra da Saúde Marta Temido, hoje anunciada, constitui a primeira baixa de 'peso' no XXIII Governo Constitucional, que tomou posse há exatamente cinco meses, em 30 de março.
Marta Temido iniciou funções como ministra da Saúde em outubro de 2018 e foi ministra durante os três últimos três executivos liderados pelo socialista António Costa.
No último Congresso do PS, em agosto de 2021, tornou-se militante do partido, com o cartão entregue pelas mãos de António Costa e o seu nome chegou mesmo a ser incluído entre os dos possíveis sucessores do atual secretário-geral do PS.
A ministra demissionária é doutorada em Saúde Internacional pelo Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Gestão e Economia da Saúde, pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, e é licenciada em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Temido também foi subdiretora do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa e presidente do conselho diretivo da Administração Central do Sistema de Saúde, assim como membro do conselho de administração de vários hospitais do Serviço Nacional de Saúde.
[Atualizada às 12:38]