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Ana Sofia Carvalho
Opinião de Ana Sofia Carvalho
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​Tapar o Sol com a peneira. Algumas notas sobre o Testamento Vital

02 mai, 2019 • Opinião de Ana Sofia Carvalho


Os números agora anunciados, que indicam 24.333 testamentos vitais ativos na população portuguesa é, realmente, muito pouco significativo.

Recentemente fomos confrontados com a notícia em que no ano que se discutiu a eutanásia em Portugal assistimos a um aumento, ainda que residual, do número de pessoas registadas no Registo Nacional de Testamento Vital (RENTEV).

De facto, os números agora anunciados, que indicam 24.333 testamentos vitais ativos na população portuguesa é, realmente, muito pouco significativo. Se a este número acrescentarmos o número de testamentos vitais realizados por motivação religiosa (testemunhas de Jeová registarem através deste instrumento a sua posição relativa à recusa de transfusões de sangue) chegaremos, facilmente, à conclusão que este instrumento não é considerado adequado nem relevante pela maioria da população portuguesa.

Mas, por que será? Será por desconhecimento? Teremos de centrar os nossos esforços no processo de divulgação deste instrumento? Talvez não! Na minha opinião, o problema é bem mais complexo.

Num outro artigo publicado nesta rubrica introduzi o conceito que, felizmente, é hoje uma realidade em políticas na área da saúde em vários países e, acredito, por certo, que é seguido por alguns profissionais de saúde em Portugal, e que pode ser definido como um cuidado que "responde a preferências individuais do paciente, necessidades, valores e objetivos". Na realidade as diretivas antecipadas na forma de testamento vital não reponde a este objetivo.

Em Portugal as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) incluem duas formas: o testamento vital e o procurador de cuidados de saúde. O testamento vital no art. 2.º da legislação é definido como “o documento unilateral e livremente revogável a qualquer momento pelo próprio, no qual uma pessoa maior de idade e capaz que não se encontre interdita ou inabilitada por anomalia psíquica, manifesta antecipadamente a sua vontade consciente, livre e esclarecida, no que concerne aos cuidados de saúde que deseja receber, ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente.”

A pessoa poderá também optar por nomear um procurador de cuidados de saúde; esta é feita, igualmente, através de documento escrito pelo qual a pessoa delega noutra pessoa o direito de tomar decisões em matéria de saúde, quando e se ela vier a estar incapaz de manifestar a sua vontade.

A legislação aprovada foi precedida de diferentes projectos de lei dos partidos com assento parlamentar, de debates públicos vários e, de pareceres sobre a temática elaborados pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Mas hoje os números comprovam que, uma vez mais, escolhemos o caminho errado.

De facto, a legislação sobre as diretivas antecipadas de vontade “reflete uma mal-entendida primazia absoluta da autonomia como valor ético, quando o que é necessário, é reforçar a “intimidade” moral da relação médico doente.

Há uma constatação crescente que os modelos legais ou políticos da autonomia têm de facto obscurecido perigosamente os valores profissionais e morais do exercício da Medicina, que continuam a ser, como afirma Cassell, essencialmente os de uma profissão moral.”

De facto, uma vez mais, parece que a grande preocupação das instituições do Estado, na lógica do “progresso civilizacional” se afasta daquilo que são os reais interesses dos cidadãos nacionais.

Esta lógica desfocada, não serve os interesses dos portugueses; as pessoas o que querem é confiar nos profissionais de saúde e terem acesso rápido e eficaz ao que verdadeiramente precisam, mas, infelizmente, essa necessidade não se resolve com uma peça legislativa.

No seguimento dos cuidados centrados na pessoa temos assistido em alguns países a duas estratégias que penso serem de especial importância: os cuidados integrados e os planos antecipados de cuidados. Vários países na Europa e a nível internacional tem investido significativamente no reforço destas duas estratégias. Sobre a integração de cuidados, talvez menos diretamente relacionada com a questão que hoje discutimos, o testamento vital, deixo um link que penso ilustra bem o trabalho a ser desenvolvido no Reino Unido e que torna muito visível o interesse da estratégia.

A segunda situação, o plano antecipado de cuidados, tem em países como o Canadá, Austrália e Escócia (e outras partes do Reino Unido), surgido como uma estratégia eficiente de acompanhar eticamente os doentes em final de vida, idosos e doentes com doenças neurodegenerativas.

Penso que não será exagerado afirmar que todos estamos conscientes de que a maioria dos doentes em Portugal morre sem que os seus desejos e anseios tenham sido considerados adequadamente.

Apesar do progresso, ainda muito insuficiente, da área dos cuidados paliativos, muitos países consideraram que o testamento vital não respondia de forma adequada às questões do final de vida. Desta forma, temos assistido progressivamente ao desenvolvimento de planos antecipados de cuidados para doentes em que é expectável a perda da capacidade de decisão.

Esta estratégia alicerçada numa relação médico doente verdadeira e empática permite ao doente pensar e definir antecipadamente quais são os valores, crenças e objetivos contruindo, assim, uma narrativa personalizada de opções, anseios e preocupações permitindo a quem tem de decidir maximizar a sua autonomia e respeitar a sua dignidade.

Este documento editado na primeira pessoa, eventualmente com a participação da família e do profissional de saúde, permite ao doente pensar e ajudar a pensar as fases finais da sua vida, tocando questões centrais como ventilação e o local de morte preferencial, mas também tudo aquilo que são outras situações a ter em consideração; quem contactar para alimentar o cão em situação de hospitalização, como planear a mudança ou não dos nomes nas contas do banco, quem será a pessoa significativa quando não tiver capacidade de decidir autonomamente. Este documento, não vinculativo e que pode ser constantemente reformulado, é um mapa que permite, sem dúvida, colocar aquela pessoa no centro dos seus cuidados.

Sejamos nós capazes de falar da morte aos nossos doentes; sejamos nós capazes de lhes dar tempo e atenção suficiente para percebermos e os ajudarmos a perceber o que verdadeiramente desejam e precisam; sejamos nós capazes de dar futuro a quem se sente aniquilado pelo presente. Enfim, sejamos nós capazes de perceber que a relação dos médicos com os seus doentes não cabe numa disposição testamentária. Sejamos nós capazes de nos deixarmos de preocupar com minudências que servem 25 mil portugueses para nos focarmos no melhor interesse de todos os portugueses. Por que somos tão resilientes a estas verdadeiras “conquistas civilizacionais”?

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