20 jun, 2019
A descoberta das células estaminais é uma verdadeira revolução na área da biomedicina. Trata-se de células indiferenciadas com a capacidade de se diferenciar em qualquer célula do organismo, podendo permitir, no futuro, substituir células e recuperar funções específicas.
Em 1998, a equipa de Thompson consegue, pela primeira vez, derivar células com características estaminais de embriões crio preservados resultantes de procedimentos de procriação medicamente assistida (1).
Nessa altura a grande questão ética estava relacionada com a destruição de embriões que, evidentemente, é uma questão essencial no debate bioético. Entretanto a investigação nesta área demonstrou que as células estaminais de adulto, células que existem no nosso corpo em diversos órgãos, tinham características que, eventualmente, lhes permitiriam competir no potencial terapêutico com as células isoladas de embriões sem oferecer problemas éticos.
Assim, passados alguns anos verificou-se que as células estaminais isoladas de adultos podem dar origem a tipos celulares especializados de outro tipo de tecido, diferente daquele de que elas são originárias; ou seja uma célula isolada do intestino pode dar origem a uma célula do fígado. E, surpreendentemente, ao contrário do que inicialmente se antevia, já foi possível transformar células estaminais de adultos em células estaminais com características de células embrionárias, as células de pluripotência induzida. Estas células, assim como as células estaminais de adultos, além de resolverem o problema ético da destruição de embriões, estão na linha da frente nas potenciais estratégias terapêuticas futuras.
No entanto, ultrapassado o que parecia ser a questão central desta investigação, o uso e destruição de embriões humanos somos, atualmente, confrontados com a questão de as células estaminais aparecerem como forma milagrosa de resolver todos os problemas que afetam uma sociedade de consumo.
Os meios de comunicação social têm tido em toda esta questão um papel central. Nos “media”, o potencial aparece muitas vezes hiperbolizado em possível. No entanto, não podemos deixar de sublinhar que estes são o veículo de divulgação da ciência ao público em geral. Ou seja, a distorção na veiculação da informação de carácter científico, poderá resultar, sem ou com intenção, na veiculação de potenciais terapêuticos absolutamente infundados.
Recentes investigações nesta área falam de notícias surpreendentes sobre as mais diversas aplicações destas células milagre que, de facto, com os seus 20 anos de investigação ainda podem, infelizmente, oferecer muito pouco.
Atualmente, encontramo-nos numa fase inicial dos primeiros ensaios em seres humanos no sentido de provar o interesse terapêutico deste tipo de investigação. Do ponto de vista científico, tirando duas ou três aplicações muitíssimo específicas, não existe qualquer prova científica sobre o potencial terapêutico destas células.
Apesar dos avanços que vão sendo conhecidos no campo da investigação em células estaminais, persistem nesta área diversas dificuldades de natureza técnico-científica tais como: (i) o insucesso em direcionar eficientemente a função destas células estaminais, (ii) capacidade de degenerescência tumoral e finalmente (iii) o problema de rejeição imunitária.
O uso desfocado do potencial terapêutico destas células tem crescido exponencialmente. De facto, não existe qualquer evidência científica que justifique a venda e promoção do termo “células estaminais” do ponto de vista comercial… Os mais diversos cremes ou séruns com células estaminais que combatem o envelhecimento (2) às loucuras da Kim Kardashian (3) com o sangue numa técnica denominada de “vampire facial”, às infusões com células estaminais nos atletas como Cristiano Ronaldo (4) que esperam recuperar de microrrotura a tempo de um jogo essencial, são todos produtos de “fake science”.
Para melhor ilustrar esta tendência parece-nos oportuna a introdução de uma figura de estilo, a hipérbole; definida como “figura de retórica que consiste em exagerar uma ideia ou expressão, de uma forma positiva ou negativa, ampliando a sua verdadeira dimensão”.
O debate respeitante às aplicações das células estaminais foi dinamizado por potenciais utilidades hiperbolizadas, resultantes essencialmente de otimismos injustificados e expectativas infundadas. É indispensável, em nosso entender introduzir outra questão inerente a esta problemática das hiperbolizações: o facto de a dinâmica imposta pelo rótulo científico “células estaminais” poder infligir danos económicos e mesmo físicos através da criação de expectativas absolutamente falsas. Acenar com as vantagens terapêuticas ou cosméticas usando o rótulo “células estaminais”, constitui, neste momento, uma fraude científica.
(1) Nas técnicas de PMA, normalmente, e porque a taxa de sucesso da técnica ainda é baixa, o número de ovócitos a fertilizar é superior aqueles que podem ser transferidos para o útero da mulher. Assim, muitas vezes o que acontece é que nem todos os embriões fertilizados podem ser transferidos por imposição legal. Assim, p.e. no caso de termos quatro embriões fertilizados o casal poderá optar por transferir 1 ou 2 e criopreservar (congelar a temperaturas muito baixas) os restantes. Deste modo, temos dois embriões que ficam criopreservados a aguardar a transferência, ou seja, um projecto parental. No entanto, muitas das vezes tal não acontece e o embrião perde a possibilidade de ser filho de alguém. O limite da criopreservação está definido, na minha opinião de uma forma um pouco arbitrária, mas o que sucede é que passado 3 anos se este embrião não for transferido será necessário tomar uma de três posições: destrui-lo, doar para investigação ou doar a um casal infértil que, por motivos diversos, não consegue ter embriões a partir dos seus óvulos e espermatozoides. É sobre os embriões que são doados para investigação que, na maioria das vezes, decorre a investigação em células estaminais embrionárias.
(2) Na “amazon uk” encontramos uma lista de 258 cremes que vão desde as células estaminais da placenta às células estaminais da maçã.
(3) ver p.e. https://miranda.sapo.pt/pele/artigos/vampire-facials-tudo-sobre-este-famoso-tratamento-com-sangue