22 nov, 2019 • Ana Sofia Carvalho**
Tenho vindo a adiar escrever sobre o assunto da ADSE e, realmente, não sei bem porquê… Agora que assistimos a mudanças de regras com consequências sérias para os seus beneficiários, na verdade, talvez possa ter sido, tão simplesmente, por uma questão de conflito de interesse.
Sou beneficiária da ADSE; em 1985 foi permitida a inscrição dos docentes do Ensino Superior, privado e cooperativo, inscritos na CGA (Caixa Geral de Aposentações) neste regime e, sendo professora da Universidade Católica, fui beneficiada com essa possibilidade. No entanto, como ensino nas minhas aulas sob o ponto de vista da justiça e equidade na distribuição de recursos sempre considerei que o facto de este subsistema não ser para todos os que dele quisessem beneficiar constitui uma situação eticamente problemática.
A eticidade desta situação tem vindo a assumir contornos cada vez mais complexos. De facto, como tenho vindo a escrever em artigos anteriores, a situação de rutura do SNS coloca quem não tem seguro ou acesso a qualquer subsistema de saúde numa situação de desigualdade gritante. O acesso a consultas, cirurgias, fármacos inovadores em tempo útil por uns, os que têm a possibilidade de usufruir de subsistemas e seguros e, consequentemente, podem recorrer a instituições de saúde privadas, e os outros que esperam e desesperam e talvez morram constitui, na minha opinião, uma situação moralmente inconcebível.
Se não sustivermos a crise, passaremos facilmente (...)
Se a ADSE (Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado) foi criada em 1963 com o objetivo de ultrapassar uma situação de desproteção dos funcionários públicos em relação aos demais trabalhadores das empresas privadas, hoje aquilo a que assistimos é à desproteção dos funcionários das empresas privadas (aqueles que não podem ter seguro de saúde) em relação aos demais trabalhadores do Estado.
Estando nas mãos do Estado modificar o alargamento da ADSE a novos universos de quotizados, não se entende que a possibilidade de não corrigir esta injustiça não seja seriamente considerada. Evidentemente que qualquer situação a pensar deverá ser pesada face aos eventuais desafios de sustentabilidade do próprio subsistema, mas não considerar seriamente e sem disputas ideológicas que opõem o setor público de prestação de cuidados de saúde ao privado não é moral nem socialmente aceitável.
No entanto, e por isso falei de conflitos de interesse se no início, esta situação de vantagem significativa era por demais evidente e por isso constituía uma situação eticamente inaceitável, temos nos últimos tempos assistido a mudanças no regime de comparticipação da ADSE que importa sublinhar. Ou seja, se não podemos dar a quem só tem acesso ao SNS tratamentos adequados e inovadores então, ao invés de resolver a situação, vamos nivelar por baixo, e remover essa possibilidade de acesso aos quotizados da ADSE.
No SNS, a problemática relacionada com o racionamento de fármacos inovadores tem estado na ordem do dia.
A evolução dos preços de medicamentos, das interve(...)
Diferentes médicos e o colégio de oncologia da Ordem têm denunciado que o processo de aprovação de novos fármacos inovadores é insustentável no que concerne à possibilidade de oferecer aos doentes oncológicos soluções terapeuticamente eficazes. Ou seja, existem vários pedidos de utilização excecional de medicamentos a serem recusados pelo Infarmed por não haver risco imediato de vida quando, na visão dos médicos, “existe um efeito comprovado na diminuição de recidiva ou no aumento da probabilidade de sobrevivência”.*
Assim, por um lado, temos uma cadeia de autorizações complexa e morosa para doentes que, normalmente, não têm tempo e, por outro, colocar como critério para um doente oncológico “risco iminente de vida” parece quase desrespeitoso. Um cancro é um cancro… e se posso evitar a metastização e com isso prevenir, pelo menos a curto prazo, a tal morte iminente, não posso usar o medicamento? Quem define e como são definidos estes critérios? Como os justificam e onde está o tão famoso princípio da transparência? Enfim…
E esta era a via sacra de que prescreve e dos doentes com cancro que necessitavam do medicamento no SNS. A partir de agosto, entendeu o Conselho Directivo (CD) da ADSE que os médicos e os doentes do SNS não deviam passar por este sofrimento sozinhos…A partir daí, os beneficiários da ADSE e os hospitais privados serão seus companheiros nesta tormenta. Ou seja, ao contrário do que acontecia até aí, entenderam que devíamos tratar todos da mesma forma… mal!!! Em vez de nivelar por cima e tentar resolver a situação no SNS não; aumentam a dimensão do problema e, em consequência, as pessoas não vão poder usufruir dos medicamentos e, por isso, irão morrer pior e mais depressa…
Será esta a primeira iniciativa para responder à iminente insustentabilidade da ADSE apontada no Relatório do Tribunal de Contas? Se sim não me parece que o caminho seja por aí…nem percebi que esse fosse o caminho apontado no relatório apresentado.
Como tão bem afirmou Daniel Bessa na sua coluna do "Expresso", esta medida uma vez mais parece um “empenhamento em demonstrar que não é sustentável para depois extinguir”. De facto, este país não é para doentes…ohh… esqueci-me. Queremos despenalizar a eutanásia…Vamos conseguir que todas as pessoas peçam para morrer…não podem ser só as do SNS…têm de ser TODOS…
* Para melhor perceber esta situação é importante perceber o circuito do medicamento dentro do sistema; qualquer medicamento a ser introduzido tem, obrigatoriamente, que estar aprovado pela Autoridade Europeia do Medicamento (EMA) que avalia cientificamente a qualidade do fármaco proposto, após essa avaliação científica cada estado membro através das suas autoridades nacionais terá que autorizar ou não a comparticipação do mesmo. Existe, no entanto, a possibilidade de após aprovação pela autoridade europeia e nos casos em que o médico percebe que existe uma janela terapêutica significativa ser feito um pedido de utilização excecional de medicamentos (AUE) que carece de autorização prévia a conceder pelo INFARMED para doentes, no caso oncológico, com “risco iminente de vida”.
**Professora do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa