17 jan, 2020
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Há assuntos que não param de nos surpreender. Na verdade, num artigo anterior tinha já, no meu entender, apresentado alguns argumentos relativos à questão da inevitabilidade da rampa deslizante e sobre a ilusão dos limites na questão da eutanásia. Mas, realmente, não fui criativa o suficiente.
Neste momento, nos países onde a eutanásia e o suicídio assistido estão legalizados, a colheita de órgãos a partir destes doentes é já uma realidade.
De facto, no Canadá os números relativos ao aumento de órgãos disponíveis para transplantes aumentaram exponencialmente. Nos primeiros 11 meses de 2019 foram colhidos 18 órgãos e 95 tecidos dos pacientes mortos, o que significa um aumento no número de órgãos disponíveis de 14% relativamente a 2018 e a 109% de aumento em comparação com 2017.
Existe, inclusive, uma empenhada campanha no sentido de explicar aqueles que solicitam o suicídio assistido a importância da sua generosidade para tantos que, ao contrário deles, querem viver em vez de morrer.
Coação? Decisão verdadeiramente livre? Que ideia. Falar a uma jovem deprimida da importância da sua ação caridosa e solidária de doar os seus órgãos para quem vive cego ou preso a uma máquina de hemodiálise depois de ser ajudada a morrer. Será que condiciona a sua decisão de se matar? Pergunta retórica. Claro que sim.
Mas se esta situação já nos causa perplexidade, esperem, o que aí vêm é pior. De facto, apesar do número de órgãos já ter aumentado, a forma de matar estes doentes, muitas vezes, não permite que os seus órgãos mantenham as características que possibilitem o seu uso para transplantação.
E assim, embrulhada em princípios de solidariedade e de altruísmo, tem sido proposto uma nova estratégia que permitiria que, verdadeiramente, a eutanásia e/ou o suicídio medicamente assistido, fossem soluções eficazes na resolução do problema da escassez de órgãos para transplante – a morte por doação.
O procedimento, no essencial, consistiria numa “cirurgia fatal” onde a pessoa seria morta no bloco através da remoção dos seus órgãos vitais. Esta última tendência, já publicada num polémico artigo no “Intensive Care Medicine”.
Chocados? Parece ser já objeto de intensa discussão e colher a aprovação de muitos! Surpreendidos? A criatividade tem, de facto, estas coisas.
O conceito de morte por doação (“death by donation”) transgride qualquer norma ética que com base no princípio da separação, entre o ato de morrer e o ato de colher órgãos, proíbe que os órgãos sejam colhidos antes de o potencial dador de órgão ser declarado morto.
Assim, actualmente, esta prática não só é completamente ilegal como é consensualmente considerada um homicídio. Mas, nesta lógica de sermos progressistas, a qualquer momento tudo pode mudar.
A utilização dos órgãos de doentes eutanasiados é, de facto, maximização da vertente instrumental até a um limite indizível. Matarmos para garantir a sobrevivência do sistema, é muito caro e, além disso, ainda podes ser solidário com quem precisa dos teus órgãos; a morte, de facto, tem mais valor que a própria vida.
Mais útil? Impossível. Menos digno? Impossível também.
Ana Sofia CarvalhoAna Sofia Carvalho
Professora do Instituto de Bioética
Universidade Católica Portuguesa