19 jul, 2021
Na primavera de 2020 o Reino Unido já tinha ensaiado este número. Correu muito mal. De facto, tal como fez a Suécia, a estratégia de criar imunidade de grupo deixando alguns velhinhos morrer, de modo a evitar a disrupção no sistema económico, teve consequências desastrosas e deixou o NHS (National Health System) perto da rutura.
O Reino Unido foi, de facto, um dos países mais fustigado pela Covid-19, morreram 129 mil pessoas mas, por outro lado, foi dos países com um dos planos de vacinação mais eficiente; cerca de 55% da população inglesa (os números variam em diferentes publicações) está completamente vacinada.
No dia 19 de julho de 2021 ensaiam novamente um outro número. Agora, a roleta russa é diferente; a bala que se coloca no revólver já não é, aparentemente, tão mortal, apesar de, na sexta-feira dia, 16 de julho, terem morrido (só) 49 pessoas, Boris Johnson faz girar o tambor e puxa o gatilho com a arma virada para o inesperado.
É no fundo mais uma experiência, sem robustez científica, social ou económica, onde os participantes são todos os ingleses.
É um tudo ou nada, baseado, pasmem-se, na responsabilidade individual de cada um. Nada de máscaras, discotecas abertas sem limite de capacidade, no fundo, um ‘faz de conta que acordei e tudo isto foi só um pesadelo’.
Considerar que a Covid-19 poderá ser considerada endémica, tratável como uma outra qualquer doença sazonal, não é uma novidade.
Já outro país, ligeiramente mais pequeno e menos populoso, Singapura (5.69 milhões habitantes contra os 66 milhões de habitants do Reino Unido) fez o mesmo.
Mas, tal como na primeira vaga, a estratégia foi completamente diferente. Singapura, foi dos primeiros países a fechar as suas fronteiras, implementou um amplo programa de rastreamento, que não está isento de críticas, massificou a testagem e impôs requisitos de quarentena desde o início.
Com esta estratégia teve somente 36 mortes. Agora, estes dois países são os primeiros a desenhar planos para um regresso ao “normal”.
Mas, uma vez mais, os planos, do ponto de vista da prudência, seguem estratégias opostas. O “tudo ou nada” inglês, contrasta com uma lógica precaução que perpassa o plano imposto pelas autoridades de Singapura.
Em qualquer experiência, para ser eticamente aceite, os potenciais benefícios, têm que ser significativamente maiores que os eventuais riscos.
Neste caso, mesmo sendo uma experiência biomédica, com critérios de recrutamento e de inclusão que permitem termos um número aproximado de 66 milhões de participantes, tal não se verifica.
Na sequência deste plano, que foi adiado de Junho para Julho, foi publicada uma carta no “The Lancet” por um grupo dos mais prestigiados cientistas alertando, de forma veemente, para os riscos incomensuráveis desta estratégia.
Ou seja, não existe uma, mas sim várias balas neste jogo da roleta russa que não foram consideradas, ou pior, foram consideradas despiciendas face a uma estratégia política obstinada, desajustada e até, pelo menos para mim, incompreensível.
Entre os riscos considerados destacamos:
1. A transmissão descontrolada afetará desproporcionalmente as crianças e jovens não vacinados criando desigualdades geracionais inaceitáveis.
Estes riscos acontecem não só do ponto de vista médico mas também do ponto de vista social:
a) Tendo em atenção, por um lado, a alta transmissibilidade da variante SARS-CoV-2 Delta e o crescimento exponencial de pessoas infetadas dentro desta faixa etária, e por outro, a possibilidade de crianças e adolescentes ficarem com sequelas graves ou sintomas com impacto significativo na sua qualidade de vida durante meses ou anos;
b) Permitindo que a transmissão continue e aumente durante o Verão criará um reservatório de infeção, que provavelmente irá acelerar a propagação quando as escolas e universidades reabrirem no Outono, obrigando, uma vez mais a interrupções educacionais que, como bem sabemos, terão consequências incalculáveis;
2. Diversos modelos matemáticos tendem a apontar que esta estratégia favorecerá o surgimento de variantes resistentes à vacina. Isso colocaria todos em risco, incluindo aqueles já vacinados, no Reino Unido e em todo o mundo;
3. Do ponto de vista de justiça social e equidade esta estratégia é eticamente inaceitável em dois planos:
Estes riscos acontecem não só do ponto de vista médico mas também do ponto de vista social:
a) Aumento da desigualdade entre doentes Covid e não Covid: Um aumento exponencial levará, por certo a um aumento significativo de internamentos e a uma sobrecarga insustentável para o sistema de saúde inglês (NHS) que, tal como em Portugal, se confronta com as sequelas gravíssimas (atrasos insustentáveis nas cirurgias, diminuição significativa de exames de rotina e rastreios, desmarcação de consultas sem novo agendamento …) deixadas pela pandemia nos doentes não Covid;
b) Aumento da desigualdade sociais: Estas medidas afetarão de forma desproporcionada as pessoas socialmente mais desfavorecidas e, consequentemente, mais expostos aos riscos da Covid-19, afetando, uma vez mais, desproporcionalmente os mais vulneráveis e marginalizados, aprofundando as desigualdades sociais.
Tendo em atenção os riscos anteriormente elencados e considerando a eficiência do plano de vacinação inglês que, a continuar assim, brevemente permitirá atingir a imunidade de grupo não conseguimos, de facto, entender a motivação, a lógica, política ou outra, que levou o senhor primeiro-ministro a insistir nesta loucura que, a bem ver, parece não trazer quaisquer benefícios.
Séneca dizia que “Nada é tão lamentável e nocivo como antecipar desgraças”, este dia 19 de julho é um dia de total imprudência e é uma experiência social irresponsável, cientificamente imprudente e eticamente reprovável.
Resgatando um diálogo de uma série inglesa fantástica “Yes, Minister” que não poderia ser mais atual:
Primeiro-ministro: … “este governo está aqui para governar, não apenas presidir como fizeram os nossos antecessores. Quando um país está em declínio, é hora de alguém assumir o comando e carregar no acelerador”
Secretário: “Acho que você quis dizer ‘travão’”.
Sejam as pessoas socialmente mais responsáveis e carreguem no travão para evitar a desgraça que esta aceleração inusitada do senhor primeiro-ministro pode causar aos ingleses e a todos nós.