30 mar, 2023 • Maria João Costa
É em casa que nos recebe. Ao fundo está o retrato que a pintora Maluda fez do seu pai, o então presidente do conselho, Marcello Caetano. Aos 85 anos, Ana Maria Caetano faz uma viagem no tempo. Rodeada de fotografias ao lado do pai, conta como viveu o antes e o depois do 25 de Abril de 1974.
Na madrugada em que os militares saíram à rua, o telefone tocou cedo em casa de Marcello Caetano. Do outro lado do auscultador, estava Ana Maria Caetano. “Era eu que tinha a central à noite, e tocou o telefone para chamar o meu pai. Fui à procura dele e não o encontrei”, lembra a filha do sucessor de Salazar ao podcast Avenida da Liberdade, da Renascença.
Percorreu a casa e encontrou no seu escritório o livro que Marcello Caetano estava a ler. “Tinha deixado um livro aberto sobre o comunismo”, recorda Ana Maria Caetano, que remata: “É engraçado. Era o que ele estava a ler, ou reler” naquela madrugada da Revolução.
O “dia inicial e limpo”, como lhe chamou a poeta Sophia de Mello Breyner, foi de sobressalto na família. Os irmãos foram ao encontro de Ana Maria Caetano na casa de Alvalade e acompanharam os acontecimentos “pela telefonia, como então se dizia” e pela televisão.
Ana Maria Caetano só voltou a falar com o pai horas depois. “Quando na televisão disseram que as coisas estavam acabadas, que o golpe estava acabado, tivemos licença para falar para ele. Eram para aí umas 15h00 e ele perguntou: 'o que se diz por aí?'”, lembra a filha de Caetano. “Já estão acabadas as coisas”, respondeu Ana Maria ao pai, antes deste ir preso para o Quartel da Pontinha.
Os tempos que se seguiram foram de exílio. Primeiro, Marcello Caetano rumou ao Funchal, na Madeira, e depois, por opção, para o Brasil onde regressou à vida académica e onde acabou os seus dias.
Questionada sobre o que levou Marcello Caetano a assumir o lugar para o qual foi indigitado por Américo Tomás, Ana Maria Caetano fala em “missão”. Dos anos em que liderou o país, a filha de Caetano recorda uma “história muito complicada” que envolve as visitas que o pai manteve a Oliveira Salazar.
“Ele ia visitar fazendo de conta que ele ainda era presidente do conselho. É uma história muito difícil de perceber. Tinha de ser, porque o Salazar estava impedido mesmo. Mas não era uma história fácil”, desabafa a filha agora com a distância histórica daqueles momentos.
Nas suas memórias ficaram outros momentos marcantes. Depois da morte da sua mãe, Ana Maria Caetano acompanhava o pai em muitas cerimónias oficiais. Foi com ele a Londres, numa viagem oficial.
À chegada foram confrontados com a contestação popular, por causa do massacre de Wiriyamu. “Foi um momento difícil”, recorda. “A gente saiu do avião e já estavam os cartazes a dizer que nós eramos mal vindos. Foi muito doloroso”.
Sobre o massacre de Wiriyamu, Ana Maria Caetano “considero-o uma história de guerra como há em muitos sítios quando há guerra”, mas a filha de Marcello Caetano lembra que o que a incomodava, a si e à sua geração, era a guerra em África.
“Era uma coisa que eu perguntava muito ao meu pai, e porque é que não havia liberdade de imprensa. Ele dizia que era porque não se podia pôr em causa os rapazes que iam para a guerra.”
Do pai, Ana Maria Caetano recorda um homem de família que vinha sempre almoçar a casa, mesmo em tempos de muito trabalho. Lembra também as conversas francas que mantinha com ele, com quem conversava sobre tudo.
A Ana Maria Caetano perguntamos se a Primavera Marcelista poderia ter chegado ao Verão da democracia. A resposta foi categórica: “Eu acho sempre que não, porque o meu pai não era democrata. Inventar que ele podia chegar à democracia, não podia, não chegava lá. Ele não era democrata”, sublinha.
Ana Maria Caetano estudou terapia da fala. Viveu a sua vida profissional ligada ao ensino. Dirigiu um colégio e recorda como depois do 25 de Abril, surpreendentemente não foi saneada.
Questionada sobre o atual estado do ensino em Portugal, Ana Maria Caetano considera que “o ensino é bom”, o problema são as condições que os professores têm. Já sobre o que falta cumprir de Abril, a filha de Marcello Caetano considera que “ficou por cumprir a democracia”.
Na sua opinião, “já nos esquecemos do que era a democracia. Não sei o que é que existe. Mas isto não é uma democracia, é uma “roubocracia”. É uma pouca-vergonha!”, remata.