04 mai, 2023 • Maria João Costa
Tinha apenas 40 rolos no saco de reportagem, uns a preto-e-branco, outros a cores. Alfredo Cunha saiu cedo de casa na madrugada do 25 de Abril de 1975 para fotografar o que estava a acontecer. Tinha então 20 anos, trabalhava para o jornal O Século e passou o dia na rua em corridas entre a redação para revelar as fotografias e as ruas onde estava em curso a Revolução.
Em entrevista ao podcast Avenida da Liberdade, Alfredo Cunha recorda a confusão das primeiras horas. Depois de ter tentado chegar à sede da PIDE, na rua António Maria Cardoso, o fotojornalista desceu ao Cais do Sodré, percorreu a Ribeira das Naus e foi até ao Terreiro do Paço
“Havia bastante tenção, e houve tiros. Pensei que ia começar uma guerra civil. Os militares começaram a disparar uns para os outros. Houve troca de fogo ligeiro entre os militares. Havia snipers. Não se sabia muito bem de onde vinham os tiros. Principalmente de manhã, na rua do Arsenal. Ouviam-se disparos de metralhadora de vez em quando” Recorda, Alfredo Cunha.
Nas memórias daquele dia estão muitas imagens, desde logo a primeira que tirou e que mostra “uma cena típica dos trabalhadores que vinham com aquela pastinha que trazia a lancheira”. Mas há outras que se tornaram ícones, como o retrato que fez de Salgueiro Maia.
“É um momento de cumplicidade e de uma certa paciência para comigo”, conta Alfredo Cunha porque tinha vindo a correr do jornal, onde tinha ido revelar umas fotografias e tinha chegado “atrasado a uma conferência de imprensa”. “Ele como viu que eu vinha a correr, esperou e posou para a fotografia. Essa fotografia foi recusada na altura, não foi publicada”.
A imagem icónica só foi conhecida, 20 anos depois quando, o então diretor do jornal "Público", Vicente Jorge Silva a publicou com um editorial chamado “Os olhos do Capitão”. Mas há mais momentos curiosos na história da relação desse dia de Alfredo Cunha com o capitão Salgueiro Maia.
“O momento em que conheci o Salgueiro Maia foi, ele zangado comigo, a perguntar-me quem eu era e o que estava ali a fazer. Eu disse-lhe que era fotografo do Jornal O Século, e ele disse-me ‘Isso não me interessa! Você não pode andar a esconder-se senão arrisca a levar um tiro. E já agora, aviso-o que isto é um movimento para derrubar o Governo. Se você por acaso for a favor, são aqueles ali; se for do contra deixe-se estar aqui connosco’. Achei esse momento fantástico! Percebi logo quem mandava ali!”, recorda a rir Alfredo Cunha.
Entre idas e vindas à redação, Alfredo Cunha admite: “Acho que perdi dos momentos melhores do 25 de Abril, a subida do Terreiro do Paço para o Carmo, porque foi precisamente quando fui revelar”. Ainda assim, quando regressou ao terreno, recorda os rostos de colegas seus de jornalismo como os escritores José Cardoso Pires, ou Urbano Tavares Rodrigues com que se cruzou no Largo do Carmo, onde fotografou a euforia.
Depois da Revolução, no período que se seguiu, Alfredo Cunha viajou, uns meses depois, em junho, para África para retratar o que se passava nas antigas colónias. “Fiquei muito admirado, porque nós, aqui, estamos a ignorar o que se estava a passar em África”, aponta o fotojornalista que hoje está reformado dos jornais.
Em conversa com o podcast Avenida da Liberdade, o fotógrafo conta que foi primeiro para a Guiné-Bissau, onde foi preso por andar a fotografar, depois seguiu para Moçambique, Angola, Cabo Verde, São Tomé. “Assisti à descolonização toda!” conta.
“O regime anterior esticou demasiado a corda. Não negociou quando devia ter negociado, quando estavam bem militarmente. Quando as coisas chegaram ao ponto a que chegaram, nós salvamos o que podemos que foram as pessoas”.
Desses momentos, Alfredo Cunha admite que “ficou fascinado” quando chegou a África. “Para mim, a primeira vez que vi os guerrilheiros, repara, para nós eram os terroristas! E afinal eles não eram os terroristas, eram os tipos que lutavam pela independência dos países deles. E os nossos soldados também não eram os fascistas, não eram os malandros nem os bandidos. Eram os que eram obrigados a ir”, lembra desse tempo o jornalista.
Alfredo Cunha, é autor de outra imagem que se tornou um símbolo do retorno. A fotografia foi tirada por acaso, num dia em que passeava à beira Tejo. “Fui dar uma volta e de repente vi o Padrão dos Descobrimentos rodeado de caixotes. E fotografei. Quando olhei bem, vi dois momentos. Havia a ida [Padrão dos Descobrimentos] e o retorno [os caixotes]”, conta Cunha de uma das suas “fotografias bem conhecidas”.
Já deixou as redações há muito e a memórias que trouxe da última onde passou, não lhe são agradáveis. Questionado pelo podcast sobre como vê hoje a imprensa e a sua arte, a fotografia, Alfredo Cunha é categórico: “Acho que o jornalismo, tal como o conhecemos, está em vias de extinção e a fotografia também”.
O repórter que lembra o ambiente de liberdade que havia dentro das redações, no tempo da ditadura e numa altura em que havia censura, considera que hoje há perigos. “Considero a Inteligência Artificial como a energia atómica. Tem um lado bom e um lado terrível. O lado mau é o refazer da história”.
Questionado sobre o que seria revolucionário em 2023, Alfredo Cunha afirma que seria “termos um Governo que tivesse como programa fazer felizes os portugueses. Isso é que seria revolucionário. Vejo que há sempre dinheiro para muita coisa, e não há para outras”, aponta o fotografo que considera que falta ao país “termos governantes com juízo”.