06 set, 2015 • José Bastos
É a decisão crucial para abrir o novo capítulo do acolhimento de refugiados na Europa. A Agência Federal de Migração e Refugiados adopta, desde o início de Setembro, a medida, mais favorável para os milhares de sírios que demandam a Alemanha em fuga da guerra. A agência de Nuremberga aplica o decreto que deixa de devolver aos países de entrada os requerentes de asilo.
O decreto significa, na prática, suspender unilateralmente a aplicação do protocolo de Dublin e anula também os procedimentos de expulsão em tramitação. Em causa estão os refugiados que chegaram à Alemanha a partir da Grécia e Itália.
De acordo com o protocolo de Dublin, o primeiro país ao qual os refugiados chegam ao entrar na União Europeia será responsável por todo o processo de asilo. O documento está assinado por todos os estados membros, mais a Noruega, Islândia, Suíça e Liechtenstein.
No meio das críticas à falta de acção da União Europeia face aos refugiados, em fuga das várias tragédias do Médio Oriente e África, a decisão alemã constitui o ponto de viragem na crise.
José Azeredo Lopes, professor da Universidade Católica Portuguesa, elogia a medida tomada pela maior potência da União Europeia.
“A verdade é que a Alemanha tem sido exemplar”, afirma o especialista em Direito Internacional, no "Conversas Cruzadas" especial sobre a crise de refugiados.
“Independentemente do que possamos pensar da senhora Merkel noutros domínios – e eu não penso bem – acho que ela tem sido a líder, de longe, mais exemplar no plano europeu”, nota.
“Exemplar pela forma como tem conseguido enfrentar esta questão e pelo modo como, sem qualquer ambiguidade não tem compactuado com a tibieza e, sobretudo, com a cobardia de muitos. Daqueles que quando precisam estão sempre a bater à porta, mas quando outros precisam invocam qualquer pretexto para o não fazer”, diz Azeredo Lopes.
A deputada Mónica Ferro, coordenadora do Grupo Parlamentar Português sobre População e Desenvolvimento, acentua a necessidade da Europa assumir os seus valores essenciais.
“Há uma série de dados que foram politizando um debate que não era político. Por exemplo, a introdução de uma narrativa securitária: os constantes sinais de alerta para a ideia de que no meio destes milhares de pessoas poderíamos ter infiltrados jihadistas que viriam cometer atentados na Europa”, afirma Mónica Ferro.
Mónica Ferro: “São milhares em busca de.... uma vida”
“São milhares de pessoas em busca não de uma vida melhor, mas sim em busca de... uma vida. Isto só tem um objectivo: minar aquele que era um dos valores fundacionais da Europa e que é o valor da solidariedade”, afirma a professora do Instituto Superior de Ciências políticas da Universidade de Lisboa.
“Aí, partilho de alguma inquietação em relação às quotas obrigatórias. Confesso precisar de reflectir um pouco mais sobre a matéria, mas é uma disposição que, à partida, não me repugna. A Alemanha e a França apareceram a apoiá-la quando não eram adeptos de primeira linha”, faz notar Mónica Ferro.
José Azeredo Lopes elogia a posição de Paris. “Concordo e, talvez, seja mais surpreendente a posição da França. Considerando que por cada dois requerentes de protecção internacional que batem à porta da Alemanha, pelo menos, um vê o pedido aceite já em França apenas um em cada três o consegue”, sustenta o professor de Direito Internacional.
Mónica Ferro adiciona argumentos. “Sublinho um dado que usei por estes dias. Um número que causou alguma surpresa. Foi o de dizer que se nós deixássemos entrar os 280 mil que, há semanas, estavam a tentar aceder à Europa – que tem 508 milhões de pessoas – isso significaria 0,07% da população europeia”, relativiza a deputada.
Azeredo Lopes: “UE tem capacidade para atalhar problema na fonte?”
Na emissão de "Conversas Cruzadas", Azeredo Lopes equaciona várias dimensões do desafio colocado à Europa por esta crise dos refugiados a entrar num ponto de não retrocesso.
“Há agora várias questões com que nos veremos confrontados de uma vez por todas”, alerta.
“Primeiro: aceitamos ou consideramos mau o princípio das quotas obrigatórias? Confesso ter algumas dúvidas, mas esta é claramente a orientação ‘do dia’ uma vez que o ACNUR entende que a União Europeia deve, pelo menos, albergar 200 mil pessoas nas quotas obrigatórias”, prossegue Azeredo Lopes.
“Já o senhor Juncker, para variar, está sempre atrás e fala apenas de 120 mil para acrescentar aos 32.256 que, a muito custo, foram arrancados aos estados na cimeira de Julho último”, nota.
“Segunda grande questão: quem deve enfrentar o problema? É, de uma vez por todas, um problema europeu ou não é? Isto porque mais de 72% dos pedidos de asilo são tratados em apenas cinco dos 28 Estados. Independentemente da análise do estado português poder acolher três mil pessoas, é bom ter a noção de que a Alemanha pode chegar às 800 mil”.
“Significa que mesmo proporcionalmente o esforço de vários – poucos – países europeus é infinitamente superior ao esforço de países mesmo pequenos como Portugal”, sustenta.
“Em terceiro lugar: para acelerar e enfrentar os casos mais graves – são todos, mas mais graves – é ou não desejável uma lista de países onde, em princípio, o requerente que deles provenha não tenha direito a pedir asilo político? Isto acontece, sobretudo, em relação aos países dos Balcãs, Kosovo, Macedónia, a própria Sérvia, onde o requerente, por vezes, pede a protecção internacional por razões económicas”, afirma José Azeredo Lopes.
“Finalmente: tem ou não a União Europeia a capacidade para atalhar o problema na fonte? É ou não preferível estancar o fluxo na origem – e não pode ser só à bomba – nem sequer permitir que o mercado da criminalidade se financie à nossa custa? Mercado da criminalidade que, depois, nos vai atacar nomeadamente o controlado pelo Estado Islâmico”, alerta.
“Porque esta gente é primeiro vilipendiada, violada e explorada, por exemplo, por gangues e pelo Estado Islâmico e vem depois, sem nada, bater-nos à porta suscitando, evidentemente, questões de humanidade básica que me dispenso de desenvolver”, afirma Azeredo Lopes.
Mónica Ferro: “Temos de saber acolher”
Como tentar então suavizar as consequências da crise migratória e de refugiados? Como confrontar a Europa com a necessidade de soluções arrojadas e ambiciosas? Mónica Ferro aponta caminhos.
“Claro que estas crises têm de ser tratadas a montante como é evidente. Temos de combater as causas profundas dos conflitos e temos de os trabalhar na origem”, diz.
“Nas causas estão sempre as desigualdades, se quiser, numa palavra, a pobreza. A solução passa sempre por trabalhar com os países de onde estas pessoas são originárias. Não tenho dúvida de que, por todas as razões, seria aí que prefeririam viver. Temos de trabalhar no sentido de criar sociedades mais pacíficas e mais estáveis. O processo tem duas facetas: do desenvolvimento, mas também da segurança”, indica.
“Estamos a falar de países onde o estado ou não existe ou está a ser questionado de forma muito violenta por grupos que tentam capturar o poder, entre os quais, o Estado Islâmico. Portanto tem de haver aqui um trabalho de quase prevenção destes fluxos. Quando estes fluxos acontecem temos de os saber acolher”, faz notar Mónica Ferro.
“Há aqui uma dupla tarefa. Na origem segurança e desenvolvimento e na recepção uma grande preocupação humanitária de reinstalação e reintegração destas pessoas”, conclui a vice presidente do Fórum Europeu de Parlamentares sobre População e Desenvolvimento.
Azeredo Lopes: “Ocidente devia ter vergonha na cara”
Durante todo o verão, o debate da crise oscilava em termos que confrontavam a segurança exigida à solidariedade necessária. Não mais. José Azeredo Lopes enumera erros de avaliação e causas de um problema que exige soluções globais, estruturais com medidas estratégicas e económicas. O momento é também de reflexão profunda sobre erros próprios e alheios.
“O Ocidente devia enfrentar a questão, e desde logo, ter um bocadinho de vergonha na cara para perceber a origem do problema. Está em muitos espaços onde interviemos e lançamos o caos”, afirma Azeredo Lopes.
“Se pensar no Iraque, se pensar na forma como fomos interpretando o que devia ser a Primavera Árabe, se pensar na Síria e se eu pensar na Líbia (dois casos de intervenção directa ou indirecta de muitos dos estados da União Europeia e Estados Unidos) então talvez devêssemos encarar a questão da segurança na gestão das situações pós-conflituais”, analisa.
“Somos – no Ocidente - bastante bons a teorizar sobre a vontade de intervir e de instalar a democracia. Somos bastante menos bons na prática, porque, normalmente, só fazemos disparates”, diz o professor de Direito Internacional.
“Basta ver o caso da Síria onde fizemos tudo para derrubar Assad e agora fazemos tudo – fingindo que não o fazemos – para que não caia, porque se cair então é que vai ser uma questão interessante”, ironiza.
Incapacidade de perceber o Médio Oriente? “Temos uma visão muito primária, quase infantil, de que não nos conseguimos libertar. A de que se interviermos num sítio estamos necessariamente a actuar em favor do bem contra o mal. Ora, esse sítio, normalmente, está infestado de maus."
“Não só está infestado de maus como a intervenção tem um efeito reactivo que desencadeia o surgimento de mais maus. Se formos ver as rotas do Mediterrâneo e quem, actualmente, se financia com esta tragédia porventura temos que pensar numa intervenção militar localizada. Não estou a falar em ataques a cidades ou do género”, esclarece Azeredo Lopes.
“Refiro uma intervenção localizada – já foi pré-anunciada, mas abortou por não ter apoio no Conselho de Segurança da ONU – que, pelo menos, significaria, um golpe a estes grupos criminosos. Estancava-se a acção de grupos armados que estão a enriquecer, de alguma forma, à custa de centenas de milhares de pessoas”, afirma.
“Grupos que estão a reforçar o seu poder que, evidentemente, mais tarde vai ser usado contra nós”, alerta Azeredo Lopes.