02 dez, 2024 • Inês Braga Sampaio
A necessidade de uma reforma administrativa total é estrangulada por um sistema em que Lisboa manda e o medo à descentralização impera. É o que defende o jornalista, comentador e escritor Henrique Monteiro.
No seu discurso durante o almoço-conferência "Conversas na Bolsa", no Palácio da Bolsa, no Porto, com o tema "O absurdo centralismo de um país macrocéfalo", Henrique Monteiro lamenta que desde que, desde o referendo à regionalização de 1998, durante o Governo de António Guterres, não se tenha voltado a debater "verdadeiramente" possíveis reformas para a regionalização.
"O que é verdade é que existe um receio, um temor, um medo, ou outra que queiram utilizar, para que essas reformas possam ter um sentido claro na via da descentralização. A gente muda os nomes, mas não muda o conceito geral, que é, como se dizia antes, 'o Porto trabalha, Coimbra estuda e Lisboa diverte-se'. Não será tanto assim, mas não anda lá muito longe. Lisboa manda. E continua a mandar", declara.
Para tal contribuem, no entender do jornalista, três argumentos diferentes, que considera serem "falaciosos": o primeiro, de que a regionalização, ao introduzir mais estruturas de poder intermédio, além de ser cara, propicia maior corrupção; o segundo é que o poder regional tende a eternizar-se e a não ter freios e contrapesos; o terceiro é de que Portugal é demasiado pequeno para poder subdividir-se em regiões.
Sobre o primeiro argumento, Henrique Monteiro não acredita que haja uma relação causa-efeito entre o número de estruturas de poder, a sua proximidade com os eleitores e a corrupção: "Os autarcas são no geral escrutinados por uma oposição organizada, ao passo que os inúmeros delegados ministeriais regionais não têm escrutínio absolutamente nenhum, a não ser do próprio ministério das inspeções gerais que o Ministério possa ter."
"Mas posso dar de barato que isso aconteça. E aqui, eu começo a nadar fora de pé, aquela parte em que vou dizer coisas que acho que nunca vão ser concretizadas: é que a nova visão administrativa devia implicar, mais do que criar regiões com estruturas eleitas pelos cidadãos do espaço que as compõem, ser uma forma coerente de olhar para o país", argumenta.
Nesse sentido, Henrique Monteiro aponta qual seria a primeira coisa a fazer: "Uma reforma administrativa total."
"Hoje, temos círculos eleitorais que são os antigos distritos. Aí, elegemos deputados, a quem teoricamente poderíamos recorrer, embora a lei diga que todos eles, eleitos por onde forem, representam os cidadãos do país, não se percebendo, então, por que é que não fizeram o círculo nacional. Além do mais, no sistema atual, já temos um distrito, ou o que resta dele, que elege apenas dois deputados, que é o distrito de Portalegre. E depois, outros, como Beja, Braga e Bragança, elegem três. E é por isso que, por exemplo, quando foi a maioria absoluta do PS, em Portalegre só havia deputados do PS, não havia mais ninguém. Todos os outros votos foram perdidos", assinala.
Para o jornalista, é necessário evitar esta "distorção terrível" numas eleições. Distorções essas que, acrescenta, são mais um sintoma do "mundo de absoluta confusão de divisões sobre divisões" em que Portugal vive, com jurisdições sobrepostas e mal definidas.
Por isso, o escritor e comentador defende a fusão de municípios, "com continuidade territorial e perguntando às populações".
O segundo argumento contra a regionalização, o da eternização do poder, "não parece sequer discutível" para Henrique Monteiro. De qualquer modo, "não é nada que não se resolva com uma coisa chamada limitação de mandatos", sublinha.
Sobre o terceiro e último argumento, de que Portugal é demasiado pequeno, o convidado deste "Conversas na Bolsa" não se poupa nas críticas: "É totalmente ridículo, paroquial e sem sentido."
Henrique Monteiro dá o exemplo da Bélgica, "que é do tamanho do Alentejo", que tem três regiões, duas das quais estão divididas em cinco províncias, que gerem "tudo o que é de interesse provincial". São autónomas, ainda que sob o controlo das regiões, e podem agir em vários domínios, como ensino, infraestruturas sociais e culturais, medicina preventiva, política social, ambiente, economia, obras públicas, entre outros.
"Em Portugal, tudo o que diz respeito ao poder efetivo sobre assuntos que dizem respeito aos cidadãos fica em Lisboa. Eu posso estar a exagerar, mas este é o absurdo centralismo de um país macrocéfalo", remata.
Ainda assim, Henrique Monteiro admite que as condições políticas para uma reforma administrativa total - que não se faria numa só legislatura, nem sem oposições locais, "algumas razoáveis, outras meramente mesquinhas, que implicariam uma enorme paciência e um tempo que não se coaduna com os tempos de decisão atuais" - não existem.
Algo que o jornalista lamenta, pois entende que o centralismo também sufoca o desenvolvimento das comunidades, algo que "traz gente, traz sentido de pertença, traz a tecnologia necessária".
"Infelizmente, seja qual for o governo, eles gostam mesmo é de dizer: 'Sim, estás bem aí'. Representas uns milhares de eleitores, quanto menos melhor. Mas falta-te ter poder para competir por mais, pela migração interna, pela atratividade de imigrantes, pelo crescimento de Portugal. Não como um esqueleto macrocéfalo, mas como um corpo bem proporcionado. Deste modo, todos, a começar pela capital, somos infetados pela doença da macrocefalia", conclui.
O "Conversas na Bolsa", uma iniciativa da Associação Comercial do Porto, regressa em 2025, no Palácio da Bolsa, com o apoio da Renascença.