07 nov, 2022 • Luís Caeiro *
O último relatório da Gallup sobre o panorama psicossocial do trabalho em 160 países, dos quais 38 países europeus, traz uma revelação surpreendente: a Europa é a área geográfica onde as pessoas estão menos motivadas para o trabalho e, ao mesmo tempo, mais felizes com a vida que têm.
Apenas 14% dos europeus dizem estar envolvidos com a sua profissão (sete pontos abaixo da média global), mas 47% declaram ter uma vida bem-sucedida (14 pontos acima da média global). Mais de 42% dizem viver confortavelmente com o rendimento familiar que auferem, quase o dobro da percentagem dos outros países.
Este clima de prosperidade e bem-estar foi seriamente ameaçado com a crise pandémica, e com o regresso da inflação e da guerra à Europa. Tudo indica que fomos embalados num sonho e que foram tomadas decisões com base em crenças e pressupostos errados. Não estamos, por isso, isentos de sérias responsabilidades pela crise que atravessamos.
Em Nome da Lei
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A pandemia foi o primeiro alerta para as bases frágeis em que se apoiava a abundância, a segurança e o bem-estar das sociedades mais desenvolvidas.
Os Estados Unidos, que tinham encerrado a última fábrica de penicilina em 2004, “descobriram” que dependiam da China em mais de 90% para satisfazer as necessidades de antibióticos, ibuprofeno, hidrocurtisona e vitamina C, e que a indústria chinesa estava sem capacidade de resposta às encomendas de ventiladores, máscaras, luvas, e desinfetantes, porque dava prioridade às necessidades internas.
O regresso da guerra à Europa despertou para outra realidade que muitos pareciam ignorar: a UE depende em 58% das importações, para satisfazer as necessidades energéticas. A sua maior economia, a Alemanha, depende em 64% e há países com dependências acima dos 80%. As importações da Rússia satisfaziam quase 25% das necessidades.
Ao mesmo tempo, foi preciso a guerra chegar às fronteiras para a Europa tomar consciência de que era necessária uma política de defesa comum e uma estrutura militar própria, para garantir a segurança. A crise fez-nos perceber que a sociedade da abundância tinha pés de barro e que muitas das nossas certezas não passavam de ficções.
O Ocidente já passou por muitas crises, mas esta é diferente. É uma crise sistémica que conjuga as dimensões económica, energética, ambiental e de segurança. Estamos à beira de mudanças radicais e há mesmo quem defenda, como um estudo recente da McKinsey (On the Cusp of a New Era?) que saímos da Era dos Mercados e estamos a iniciar uma nova ordem mundial, uma nova economia e uma nova sociedade.
Não é o momento de fazer profecias, mas de aprender com os erros. A crise atual abalou quatro crenças que fundamentaram a sociedade do bem-estar em que temos vivido. São falsos pressupostos que levaram a expectativas ilusórias, a omissões graves e a decisões erradas. É preciso reconhecê-los para enfrentar os próximos desafios.
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A primeira crença, associada à globalização, é a ideia de que as cadeias de valor devem estar repartidas por dois mundos distintos e intercomunicantes. Os países desenvolvidos do Ocidente investigam, criam e inovam; a Ásia e o chamado terceiro mundo obtêm as matérias-primas, produzem e transformam. Uns pensam e desenvolvem, construindo uma “economia limpa”; outros extraem e fabricam, pagando os custos da “economia poluente”. Os primeiros contribuem com “massa cinzenta”; os segundos com os baixos custos de mão-de-obra que alimentam o consumo acessível no mundo ocidental. Este pressuposto contribuiu para a prosperidade global, mas, como se viu, é uma séria ameaça à segurança dos abastecimentos, à estabilidade do emprego e ao funcionamento de áreas vitais da nossa economia.
A segunda crença reside na ideia de que a interdependência económica é um garante da paz nas relações internacionais. É uma ideia que se filia na teoria de Clausevitz: um conflito não é desencadeado se os custos forem superiores aos ganhos. A interdependência económica constituiria um fator de dissuasão mútua, uma vez que o agressor prejudicaria sempre a sua própria economia. Este princípio pode ser verdadeiro nas relações entre democracias, mas não é válido quando ideologias radicais ou lideranças psicopáticas tomam o lugar da racionalidade económica.
As energias fósseis, abundantes e acessíveis, que alimentaram o desenvolvimento do Ocidente nas últimas três décadas, estão maioritariamente em países com lideranças não-democráticas. Como afirmou Angela Merkel, numa visita recente a Portugal, a importação do gás russo foi a decisão mais racional na altura em que foi tomada. Contudo, os factos mostraram que foi um grave erro estratégico. A Europa foi alertada da pior maneira para a urgência da reconversão energética, da diversificação das fontes de abastecimento e do investimento na autossuficiência.
A terceira crença é a de uma paz perpétua depois das duas guerras que devastaram o continente europeu. O desenvolvimento económico e as políticas de bem-estar monopolizaram os investimentos e a defesa passou a ser um não-problema. Décadas de paz criaram na opinião pública a ilusão de que tinham desaparecido as ameaças e as forças armadas eram uma relíquia do passado. A verdade é que a falta de uma estrutura de defesa europeia levou, uma vez mais, ao refúgio no escudo protetor norte-americano.
A última crença é a mais difícil de desconstruir: a crença de que o bem-estar se apoia no consumo. Apesar da emergência ambiental que vivemos e dos graves problemas de saúde psicológica nas sociedades mais desenvolvidas, continuamos a avaliar a prosperidade pelos indicadores de consumo, e a nossa felicidade mais por aquilo que temos do que por aquilo que somos.
A crise complexa que vivemos convida a pensar além da economia. Provavelmente, teremos que rever a nossa narrativa da felicidade. Queremos continuar a ser felizes como temos sido? O nosso conceito de felicidade é viável? Estamos dispostos a trocar a felicidade no consumo, por dimensões mais espirituais da felicidade? O futuro vai depender das respostas que encontrarmos.
*Luís Caeiro, professor da Católica-Lisbon, coordenador de Programas nas áreas de Liderança e Gestão de Recursos Humanos, designadamente o Programa Avançado em Gestão de Recursos Humanos (PARH)
Este espaço de opinião é uma colaboração entre a Renascença e a Católica Lisbon School of Business and Economics.