13 mar, 2023 • Maria João Cunha *
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Em busca de outros enquadramentos para aquele momento único, de infinitos particulares que pudessem conferir novos e relevantes significados ao anúncio de um Papa, circunstância que, em regra, cada um de nós pode dizer que presenciou menos de um punhado de vezes no espaço de uma vida.
Como vê, cada um, estes momentos? O que diz o seu exterior e o que consegue verbalizar sobre o modo como impactam e o que representam para tantos outros? Por que estão ali?
Vi o momento reflectido na luz dos rostos que observei, no fundo dos olhares e expressões que me foi dado prescrutar, através das conversas que se soltaram naquela ligação única que é partilhar o espaço e o tempo de um momento histórico. A cola das moles humanas que fazem os cenários impressivos destas circunstâncias.
E ali estava, em cada pequeno átomo que pude alcançar daquele corpo colectivo expectante, um sentido maior para uma circunstância excepcional. O que a eleição do argentino Jorge Mario Bergoglio havia de significar para o mundo e para a Igreja.
Vista do futuro, a expectativa daquela noite pode afinal dizer-nos muito sobre como vivemos esta última década.
Esta é a crónica da primeira noite da era de Francisco. O homem que transformou a imagem dos Papas e que desde o primeiro segundo sonhou uma Igreja pobre e para os pobres, como havia de nos confirmar pessoalmente, aos jornalistas que acompanharam a sua eleição, três dias depois, na sua primeira audiência.
É o "bruá" que ecoa na praça que primeiro impressiona. Ou antes ainda os rostos emocionados, o saltitar incontido de gente mais jovem ou os rostos serenos deste e daquele que, sós, aguardam na expectativa. Assim que o fumo branco se anuncia, a correria nas ruas que dão acesso ao Vaticano é fremente, os corpos agigantam-se nos passos para que não lhes fuja aquele momento que sabem histórico.
Há uma praça feita de luz que se acomoda e se enche tão veloz como o anúncio de uma nova era. Uma nova era desejada, um desejo não expresso que serpenteia no ar. E a luz não lhes vem só dos holofotes apontados à praça, sai-lhes dos rostos e das palavras entusiasmadas que debitam ao telefone. E das crianças que alguns levam ao colo ou aos ombros. E dos encontros que se fazem num espaço onde qualquer outro encontro que não aquele mais esperado seria quase impossível.
A chuva que castigou durante toda a tarde vai misteriosamente abrandando.
Há ali uma menina de tranças e óculos quadradinhos, duas bandeirinhas americanas na mão, capa azul de chuva, que docilmente aceita dizer o que lhe vai na alma. Mas que felicidade. É a Bridget, do Wisconsin. E está ali porque a irmã se vai tornar freira, em Florença, e, que sorte, vai conseguir ver o Papa.
Atrás de nós estão duas raparigas de feições impossivelmente semelhantes às suas, no meio de tantas tão diferentes. Ah, afinal é uma família, uma mãe e quatro filhas jovens, olhar focado naquela grande janela, que está tão perto.
"As coisas vão piorar antes de melhorar", diz a que veste o impermeável rosa, talvez a do meio, para se manifestar confiante no ultrapassar de uma crise com que não se conforma. Porque é reconfortante pensar que mesmo que morramos pela nossa fé, é garantido que iremos para o céu. Diz isto com um sorriso cândido mas muito firme. As irmãs riem-se envergonhadas. Está ali uma activista católica. A mãe confirma: ensina as filhas em casa, cresceram católicos, é essa a realidade que vivem muito a sério.
Uma volta de 90 graus e dois rapazes aparecem afogueados. E olha!, são seminaristas a estudar em Roma. Um deles é quase tanto de Houston, Texas, como de El Salvador. A respiração mal o acompanha quando fala. "This is crazy!", diz o outro, "quem diria que conseguiríamos estar aqui", com muitas exclamações. Estavam a conduzir para a universidade, deram meia volta, estacionaram sabe-se lá onde e chegaram a tempo. "Este Papa é que vai ser." Diz o salvadorenho. "Eu sinto-o."
E há um momento ali que é paradigmático. Peço-lhes três palavras para emoldurar aquele momento. "God is Love" (Deus é Amor), atira alguém ao lado. Mais uma exclamação a pontuar a repetição do lado dos rapazes. E assim entra na conversa mais um casal. Tudo ali está em harmonia, sobretudo os pontos de vista sobre o momento que se vive, tão real que nem dá para acreditar. Parecia, mas não se conhecem. Ficaram a conhecer-se.
E depois ainda há duas californianas. Definitivamente estão aqui muitos americanos. Não são católicas, mas pelo entusiasmo dir-se-ia que são. "Muito intenso", "o Papa é uma grande figura mesmo para um agnóstico". Mal podem esperar até dizer às suas famílias que estão aqui.
As conversas desdobram-se como se folheiam páginas de livros de que se gosta muito. Aquela gente está ali a ver a História acontecer. E não cabe em si de contente. Até que o homem de branco se abeira da varanda e abre os braços sobre a multidão.
Uma freira uruguaia não contém o entusiasmo. É um Papa sul-americano! É argentino! E reclama para si também o momento, emocinada. "A América Latina é a grande força de evangelhização hoje", diz a freira que viveu na Argentina.
As palavras do Papa ecoam solenes. Mas também são um grande abraço àquela gente. Faz-se silêncio, aplaude-se, grita-se "Francesco" a plenos pulmões. Ufa! Rios de emoção que seguem em corrente por toda a praça de São Pedro.
Enquanto os sinos repicam, uma freira espanhola diz-nos que só falta saber a que Francisco responde o novo Papa. Borja, Xavier ou Assis. Sinal de mudança, esta escolha que a surpreende. E há detalhes menos importantes mas nem por isso menos significativos para ela, que não deixa de reconhecer: apareceu vestido de branco sem romeira, estola ou roquete. Pequenos gestos que podem significar uma vontade de mudança. Mas a mudança, diz, só acontece se estiver em todos.
1. Francisco foi uma surpresa, uma lufada de ar fresco, uma "rock star" da era digital, mas sobretudo um revolucionário no modo que quis recentrar tudo no essencial. Vale a pena perguntar se a transformação que o seu pontificado significa e trouxe como promessa se concretizou em cada um, como bem preconizava a freira espanhola, antes mesmo de o conhecer, naquela noite húmida de Março na praça de São Pedro.
2. A magia destes momentos, para cada um, pode estar nos pequenos detalhes que não fazem parte da grande história. Como na equipa da Renascença que acompanhou a eleição do Papa Francisco, durante vários dias, em Roma: Aura Miguel e Maria João Costa (a vaticanista que já fez mais de 100 viagens com os Papas e a jornalista e repórter dedicada à área da cultura); Joana Beleza e João Santos Duarte, (jornalistas multimédia, hoje no Expresso e no Observador, respetivamente); Rui Glória e Rui Fernandes (produção técnica na Renascença).
De Roma fizemos emissões especiais, reportagens rádio e multimédia, produzimos noticiários vídeo mobile, o V+ Informação [ver em baixo] exclusivamente dedicados à eleição. Estávamos no advento dos tablets e da massificação dos smartphones e as câmaras de filmar ainda precisavam de cassetes.
Para a história não oficial dessa cobertura fica, por exemplo, a imagem de um elemento da equipa a atravessar ligeiríssimo a praça de São Pedro com um portátil aberto ao colo, em direcçāo à sala de imprensa, para não interromper uma interminável exportação de um vídeo. E tantas outras.
(O tempo da fita era um pequeno pesadelo mas apesar de tudo, visto agora à distância, ainda nos permitia algum tempo de reflexão antes da publicação, algo que manifestamente todos perdemos um pouco hoje.)
Em Lisboa, teremos sido dos únicos meios de comunicação, senão mesmo o único, a transmitir com imagem (uma rádio!), em directo, o fumo branco. Uma emissão "transmediática"' - o nome pomposo para um simultâneo rádio e vídeo - completamente inovadora e inédita, à época [ver em cima]. Conduzida pelo jornalista Miguel Coelho, ainda nos estúdios do Chiado, e idealizada pelo então director-adjunto de Informação, Pedro Leal.
Afinal também há, naquele momento indelével da História do Mundo, um pouco de História da Rádio para registar.
* chefe de redação da Renascença, escreve ao abrigo do anterior Acordo Ortográfico