29 mai, 2023 • Luís Caeiro
Os factos vindos a público sobre a TAP, que culminaram com cenas rocambolescas no Ministério das Infraestruturas, revelaram outros aspetos da problemática da mentira e da forma como é usada na ação política. Como é habitual, o debate aceso que se gerou centrou-se no significado político, na legalidade das decisões tomadas pelos responsáveis e no inédito de alguns episódios apelando às audiências. A dimensão ética foi ignorada, em obediência ao princípio de que, desde que haja confiança política e seja legal, tudo é possível.
Os últimos acontecimentos desta saga lamentável mostram formas menos usuais da utilização da mentira em política e, nalguns aspetos, com refinamentos que merecem nota. Refiro a série de declarações feitas por responsáveis ministeriais sobre o parecer jurídico que fundamentou o despedimento com justa causa da CEO da TAP.
Perante o pedido da Comissão Parlamentar de Inquérito, de que lhe fosse apresentado o parecer que “blindava” o despedimento, um ministro respondeu que não o enviava porque a exigência estava fora das atribuições da CPI. À medida que aumentavam as insistências para a entrega do parecer, um segundo ministro veio dizer que o parecer não podia ser disponibilizado porque continha informação sigilosa que salvaguardava o interesse público. Mantendo-se a exigência, um terceiro ministro disse que nada podia ser apresentado, uma vez que não existia qualquer parecer. Finalmente, um quarto responsável ministerial declarou que o documento existia, mas não era um parecer. Tudo não passava de uma questão de semântica…
Nesta sequência de declarações contraditórias, alguém mentiu ou todos o fizeram. O conceito de mentira é consensual entre os especialistas: mentir é emitir uma mensagem falsa com a intenção de que o recetor a tome por verdadeira. Esta sequência de declarações tinha o objetivo de não revelar o documento, para o que os diversos intervenientes foram apresentando sucessivos argumentos, à medida que a justificação anterior não era aceite. É aquilo que se designa por “mentira em cadeia”, neste caso, malsucedida. Este modelo ocorre geralmente em mentiras que têm um único interveniente. Se a mensagem falsa se mostra ineficaz, o emissor pode reagir com outra mentira que tenta “salvar” a anterior, e assim sucessivamente.
No caso de haver um único ator, é possível manter a coerência lógica das sucessivas mentiras. No caso de envolver vários atores, como é o caso, a coerência é mais difícil porque supõe a convergência de todos. A “mentira em cadeia” raramente tem sucesso na atividade política por três razões: exige grande coordenação entre os vários atores que são pressionados em diversos contextos e locais para se pronunciarem. Por outro lado, os seus interesses e objetivos políticos, pessoais são diferentes, ou mesmo competitivos, levando a respostas que refletem estratégias individuais de poder, em prejuízo da coerência das declarações. Finalmente, a pressão para alcançar o objetivo pretendido pela mentira e o insucesso das razões já apresentadas, leva à apresentação de “novas razões” na tentativa de serem mais eficazes, mas que acabam por denunciar a falsidade das anteriores. Foi o que aconteceu neste caso.
O episódio mais digno de análise é, contudo, o que ocorreu com a preparação do depoimento da ex-CEO da TAP, ao Parlamento. Uma vez mais, os comentários na comunicação social centraram-se no significado político e na eventual manipulação do testemunho, minimizando-se a dimensão ética, numa situação particularmente grave porque não houve apenas a intenção de transmitir mensagens “preparadas” para serem percebidas como autênticas, mas utilizaram-se meios sofisticados para terem sucesso.
A mentira não se limitou a uma falsidade intencionalmente transmitida. Foi teatralizada para ganhar mais realismo, ajustar-se a um contexto específico e servir os seus objetivos últimos: ocultar más decisões, incúrias, erros jurídicos, falta de profissionalismo e, pior que tudo, ilibar os responsáveis. Neste caso, os autores também desempenharam o papel de atores. Foi uma “mentira encenada”, uma ocorrência mais rara pelos recursos e competências que exige.
O “espetáculo” foi preparado com todos os elementos de cena. Convocaram-se os atores, preparou-se um “texto” com respostas às perguntas e perguntas para as respostas, e fizeram-se os “ensaios” sob a responsabilidade de um “encenador”. A representação seria convincente, não fosse a atriz principal ter identificado o “encenador” e, logo seguir, se revelasse a existência de um “produtor”, do “libreto” e de “ensaio geral”.
A pouca relevância que foi dada a esta performance, à responsabilidade dos que faltaram à verdade em diferentes momentos e à degradação ética que tudo isto representa, é a parte mais confrangedora desta novela. A reação do primeiro-ministro só agravou este cenário embora, justiça lhe seja feita, foi coerente consigo próprio.
Quando em 2020 Mário Centeno pediu a exoneração de ministro das Finanças para, logo a seguir, ser indigitado pelo seu ex-secretário de Estado e sucessor no ministério, para governador do Banco de Portugal, o primeiro-ministro reagiu às muitas críticas com uma pergunta lapidar: “Centeno praticou algum crime?”. Esta abordagem redutora, centrada na legalidade e na confiança política foram também os argumentos para manter o Ministro das Infraestruturas.
Tudo isto mostra que mentiras e encenações para ocultar erros, negligências e seus responsáveis, manipular depoimentos a um órgão de soberania ou insanáveis contradições nos depoimentos sobre a intervenção do SIS, perderam relevância. A mentira e a irresponsabilidade banalizaram-se. A dimensão ética é ignorada tanto na decisão política como na generalidade dos comentários feitos na comunicação social por pessoas de diversos quadrantes. Esta atitude dos responsáveis políticos e dos que fazem opinião, configura a normalização da mentira, um fenómeno que ocorre quando a mentira se torna prática comum e passa a ser percebida como aceitável.
A desvalorização da mentira nos juízos e decisões dos responsáveis tem graves consequências sociais, políticas e éticas. Eleva os níveis de tolerância à mentira, uma vez que, ao não ser sancionada perde gravidade e passa a ser tida como normal. Reforça a ideia de que todos os políticos mentem e que a mentira é parte integrante da atividade política, com a generalização do descrédito e da desconfiança em relação aos responsáveis. Favorece a ideia de que mentir não é um fator impeditivo do exercício de funções públicas. Finalmente, reforça a atitude de que as elites representativas não merecem confiança, e que a democracia representativa é liderada por uma minoria sem ética.
A normalização da mentira é uma referência negativa para a sociedade e uma ameaça para as instituições. A democracia representativa fundamenta-se na confiança nos representantes eleitos e nas instituições que eles servem. O risco para a democracia vem menos dos atropelos à legalidade do que da "anestesia ética" dos que têm responsabilidades de liderança. Para as infrações à lei, temos os tribunais. Para a falta de ética, temos o descrédito nas instituições, a indignação, o abstencionismo, e a polarização. É esta a passadeira que queremos estender ao populismo?
Luís Caeiro, Professor na Católica Lisbon School of Business & Economics
Este espaço de opinião é uma colaboração entre a Renascença e a Católica Lisbon School of Business and Economics