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Opinião Conselho Nacional de Educação

Rankings, Acesso ao Ensino Superior e o Desígnio da Educação

16 jun, 2023 • Domingos Fernandes, presidente do CNE


Os rankings parecem uma ideia boa: simples, objetivos e fáceis de entender. Porém, são associados a lógicas de mercado, a práticas eticamente inaceitáveis no acesso ao ensino superior, sistema injusto e pouco credível, ignorando as questões que estão no cerne dos processos educativos. Precisamos de uma forma mais humana, mais justa e mais credível de analisar a qualidade da educação.

Os rankings estão associados ao acesso ao ensino superior pois é através deles que, numa lógica de mercado, as escolas podem exibir um indicador visto como relevante para o recrutamento de alunos que pretendem ingressar naquele nível de ensino. Nestes termos, a competição leva-as a utilizar uma diversidade de estratégias que, nalguns casos, contrariam princípios éticos que deveriam ser inquestionáveis. Uma delas tem que ver com o facto de um número de escolas (públicas e privadas) inflacionar muito as classificações internas dos alunos, pondo em evidência uma intolerável injustiça que beneficia claramente os alunos dessas instituições no acesso ao ensino superior e, em particular, aos cursos mais competitivos.

Este facto está comprovado por investigações que se realizam há cerca de 10 anos e evidencia que o acesso ao ensino superior não é justo, é de credibilidade duvidosa e beneficia claramente as classes mais favorecidas dos pontos de vista socioeconómico e cultural. É facilmente demonstrável o enorme impacto que as classificações internas altamente inflacionadas têm no acesso ao ensino superior e aos cursos mais disputados, contribuindo assim para manter as desigualdades e a já reduzida mobilidade social.

Se mais razões não houvesse, estas seriam suficientes para questionar seriamente os rankings. Porém, porque as sociedades os consideram objetivos, credíveis e tecnicamente irrepreensíveis, eles aí estão sob a forma de listas hierarquizadas, organizadas a partir de medidas unidimensionais que se julga serem indicadores fiáveis da qualidade da educação. Eles aí estão consagrando uma visão do mundo e da sociedade baseada na ideia meritocrática de que o esforço e as aptidões naturais justificam os resultados. Só quem não se esforça o suficiente ou não possui as necessárias aptidões naturais é mal sucedido. A responsabilidade social não existe, as desigualdades e as condições socioeconómicas e culturais das famílias são ignoradas. Existe apenas e só a responsabilidade individual. Isto significa que não são tidos em conta aspetos cruciais para se compreender o real significado dos resultados.

Trata-se de uma visão redutora e ilusória do que é complexo e denso como é o processo educativo. A própria OCDE tem reconhecido que a utilização das ideias meritocráticas para hierarquizar e/ou selecionar escolas ou pessoas é uma ilusão, referindo que o estatuto socioeconómico e cultural das famílias está relacionado com o que se consegue alcançar em termos educacionais. Por exemplo, os alunos de famílias carenciadas ainda estão sub-representados no ensino superior e, em particular, nas instituições e nos cursos mais prestigiados.

Os rankings são compatíveis com a ideia de que é necessário racionalizar os desempenhos das escolas e dos professores para proteger os sistemas educativos de ameaças que ponham em causa os sistemas de medida que garantem a sua suposta excelência. Neste sentido, a racionalização passa por definir standards (termo muito comum na literatura anglo-saxónica, algures entre os objetivos e as finalidades) mensuráveis, através dos quais se pedem contas às escolas e aos professores; medir a qualidade da educação para aumentar a objetividade, o rigor e a precisão das avaliações; reduzir ao mínimo os processos de interação social; e promover a comparação que, naturalmente, implica a comensurabilidade. Estas e outras ideias afins, cartesianas e positivistas, têm sido questionadas. Basta pensar-se que para comparar escolas a partir dos rankings, é necessário garantir a comensurabilidade; como as escolas gerem o currículo de formas muito diferentes, atribuindo mais ou menos tempo a determinados assuntos e variando as estratégias utilizadas para os ensinar, não está garantida a comensurabilidade.

De igual modo, a falta de atenção às interações sociais, que estão no cerne das ações pedagógicas e da qualidade da educação, é uma insuperável fragilidade. A racionalização, materializada através de certo tipo de exames e rankings, tem uma consequência bastante nefasta: o empobrecimento do que se ensina e do que se aprende pois só se ensina o que sai no exame ou o que interessa para ingressar no ensino superior. Tudo o resto é desvalorizado. E, assim, temos um currículo mínimo e facilitista.

Apesar de tudo, uma vez que os rankings são legitimados por influentes setores da sociedade (e.g., políticos, académicos, empresários, intelectuais), a ideia de que representam bem a qualidade da educação e das escolas é dada como adquirida. Assim, continua a ser importante enfrentar as questões que realmente interessam para melhorar a qualidade do que se ensina e do que se aprende. Na verdade, é necessário contribuir para que os alunos desenvolvam os seus processos mais complexos de pensamento através da resolução de problemas, das interações e dos diálogos nas salas de aula, da formulação de questões, que é talvez uma das tarefas mais relevantes para o desenvolvimento cognitivo, da utilização de tarefas que suscitem a análise de fenómenos segundo diferentes perspetivas e da transferência de conhecimento para se poder utilizar o que se aprendeu numa diversidade de contextos para além da escola. E também é necessário pensar e agir para que o desenvolvimento moral, a educação para a cidadania democrática e os valores humanos da liberdade, da solidariedade e da justiça façam parte das rotinas escolares.

Isto nada tem que ver com a ideia de qualidade da educação que predomina na sociedade e que mais não é do que uma emanação da visão mercantilista e meritocrática do mundo. Trata-se de compreender que a educação não é uma mercadoria e, por isso, tem de ser um meio de desenvolvimento humano orientado para responder às necessidades pessoais e cívicas e aos desafios da vida social.

Precisamos, decididamente, de uma renovada e mais humanizada visão acerca das escolas e da sua qualidade porque aquilo em que elas se tornarem ditará o que seremos no futuro.

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  • Joaquim Nunes Narcis
    18 jun, 2023 CIDADE SOL 12:42
    Custa-me muito que o domínio da educação recorra sistematicamente a falácias, o que muito tem contribuído para a descredibilização do discurso relativo à educação, e este artigo não altera o panorama. Os rankings incindem sobre a avaliação externa, a inflação das classificações que refere incide sobre a avaliação interna. São os rankings que mais evidenciam essa inflação. Se eles não existissem, tal inflação não seria pública e poderia ser mais facilmente escamoteada. Ora, o Sr. Prof. Dr. usa essa inflação como forma de descredibilizar o acesso ao ensino superior através de exames. O argumento é absurdo, as premissas levariam, pelo contrário, a defender um acesso exclusivamente baseado nos exames que, ao menos, garantiriam uma justiça formal, embora nunca pudessem garantir a material. Logo, non sequitur. Se mesmo os exames forem alvo de práticas duvidosas, então será preciso redobrar os mecanismos de controlo. Quando surgiu o estudo da Universidade do Porto (2012) que evidenciava os piores resultados, no superior, dos alunos provenientes do ensino privado, dever-se-iam ter redobrado esses controlos dos exames no ensino privado. Não tenho conhecimento que tal tenha sido feito (pode ser ignorância minha). Lembro-me como nos anos 90 era prática corrente no ensino público o fornecimento, durante a realização das provas, de instruções para a sua realização. O maior controlo dos procedimentos acabou, salvo possíveis casos excecionais que desconheço, com tais irregularidades, por todo o lado, no ensino público. Mas, se fossem extintos os exames nacionais, as escolas superiores mais procuradas não deixariam de ter provas próprias para selecionar os candidatos. A única diferença é que os resultados não seriam conhecidos. Naturalmente, as escolas que já têm dificuldades em arranjar candidatos não recorreriam a quaisquer provas. Ora, isso só agravaria ainda mais o fosso entre as situações socioeconómicas privilegiadas e aqueles que se teriam de contentar com as escolas que mais ninguém quereria. Pior, a opacidade do processo permitiria processos de favorecimento, como ocorrem sempre que se admite a subjetividade das entrevistas e outros procedimentos de ordem qualitativa pouco determinada. Da mesma forma, a escola inclusiva que julgo que defende, só se tem preocupado com a inclusividade sincrónica, verificando cada vez menos as consequências diacrónicas. Na verdade, não tenho a menor dúvida em dizer que essa inclusividade só tem sido alcançada por uma diminuição massiva das exigências no ensino público, não só as relativas à avaliação externa seletiva, mas também as relativas à formação da pessoa e do cidadão. Contrariamente ao que seria de esperar pela antinomia que coloca, não existe, atualmente, nenhuma dicotomia entre o adestramento para os exames e a formação global humanística que defende: ambas estão a decair, de forma acelerada, no ensino público. Admito que pudesse existir tal dicotomia pela positiva, como aconteceu no tempo do ministro Nuno Crato, onde só o adestramento parecia importar, mas não tem de existir pela negativa, pois podem ambos, adestramento e formação, degradar-se. Com facilidade, lhe daria muitos exemplos de como o pensamento crítico, a capacidade interpretativa e a autonomia intelectual têm se degradado até níveis impensáveis no passado. Hoje, é vulgar, mesmo nas turmas com melhor desempenho, que os alunos não tenham coragem ou sequer concebam a possibilidade de afirmar uma tese – não estou a referir-me a argumentos e contra-argumentos, apenas a tese. A atitude dos alunos é cada vez mais passiva e são os professores que têm que “produzir a atividade” ou aceitar os plágios e outras importações da net. Contrariamente ao afirmado pelos responsáveis, a obsessão pelos meios digitais como se fossem os únicos fins (e não meros meios) da educação, só tem agravado estas tendências. A escola pública encaminha-se para um beco e as medidas recentes têm sido ilusórias, para lá dos efeitos sincrónicos, nomeadamente no menor abandono escolar, agravando as dificuldades colocadas a uma verdadeira mobilidade social.
  • Ana Araujo
    17 jun, 2023 Lagos 11:25
    Acabem com os exames nacionais nas escolas secundárias. Ponham as universidades a fazer provas de admissão por conhecimentos competências/perfil... aí sim! As entradas eram mais adequadas e todos tinham a mesma oportunidade de mostrar as suas competências para o curso escolhido.