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João César das Neves
Opinião de João César das Neves
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Deus e o mal

06 nov, 2023 • João César das Neves • Opinião de João César das Neves


Os horrores recentes levam muitos a perguntar como Deus os permite. A pergunta não faz sentido, pois num mundo perfeito nenhum de nós poderia existir. O mal é consequência direta da liberdade, sem a qual não haveria amor. Deus lida com o mal, não o eliminando, mas levando o bem a triunfar. Isso é algo que só com Deus se consegue.

Sobretudo em épocas de raiva, como a atual, domina uma interrogação que é recorrente ao longo dos tempos: “como pode o Deus omnipotente e bom aceitar tanto mal?”

Quem faz esta pergunta não pensou com cuidado no problema. Se o fizesse, teria de considerar os contornos do tal mundo sem mal que, na sua opinião, o Deus omnipotente e bom deveria ter criado. Ao fazê-lo, a única conclusão possível é que nenhum ser humano existiria nessa obra ideal.

Num mundo sem mal não há lugar para o próprio, os seus familiares, amigos e conhecidos. Todas as pessoas falíveis, por melhores que sejam, seriam demasiado perversas para uma realidade tão perfeita. Assim, a pergunta não faz sentido, pois ela pressupõe a inexistência do perguntante.

A questão implica dois erros fundamentais. O primeiro é desconhecer a realidade. “Se um ignorante entrar na oficina de um artesão, verá uma quantidade de ferramentas cuja finalidade desconhece e, se for muito estúpido, vai julgá-las inúteis. Se, por tolice, for ferido por alguma ferramenta afiada, considerará que existem muitos seres nocivos (...) É assim que neste mundo algumas pessoas se atrevem a criticar muitas coisas de que não vêem as razões.” (S. Agostinho De Genesi contra Manichaeos I, 16, ML 34.185).

Aquilo que parece mal numa perspetiva, pode ser indispensável se bem considerado. A chuva na eira vem por causa do nabal. O mundo perfeito, que muitos imaginam, teria de ser povoado por marionetas, incapazes de liberdade. Ora o Deus bom só pode sê-lo criando capacidade de escolha, sem a qual não existe amor. E liberdade implica a possibilidade de recusar o bem. Porque, afinal, o mal não existe em si mesmo; é apenas a negação do bem; como o escuro é só a ausência de luz, o silêncio a privação de som e a morte a falta de vida.

Apesar disso, o mal é um mistério: por que razão alguém recusa o bem? Se o bem é bom, como será rejeitado, fazendo-se o mal? Mais uma vez o exemplo da oficina nos ajuda. As pessoas só querem o bem. Por isso, aqueles que recusam o bem só o fazem por causa de outro bem. Ninguém rejeita o bem, senão pelo bem.

Os piores males da atualidade, as guerras no Sudão, Ucrânia, Gaza, etc., são geradas por pessoas com ótimas intenções. Não se arrisca a vida senão por aquilo que se considera excelente. Só que, na busca desses bens, como a prosperidade, o patriotismo, a liberdade, a justiça, gera-se a destruição de outros bens, como a vida das vítimas e das cidades.

Por isso é que ambos os lados do conflito repetem sucessivamente as razões que lhes assistem, recusando-se a ver as justificações do lado oposto, enquanto se chacinam mutuamente. É assim que o mal explode, devido apenas e sempre à busca de bens particulares.

Estes pontos podem ter muita verdade, mas escapam à questão fundamental: “Como o Deus bom convive com isto?” Chegamos ao segundo erro da pergunta, esclarecido por outra frase do grande Agostinho, a pessoa que mais penetrou este mistério: «O Deus todo-poderoso de nenhuma maneira permitiria que um qualquer mal se introduzisse nas suas obras se não fosse suficientemente poderoso para tirar bem do próprio mal.» (Enchiridion ad Laurentium de Fide et Spe et Caritate c.11, ML 40.236).

Regressamos ao exemplo da oficina, mas agora do ponto de vista divino. Ao criar seres livres, Deus fez recuar a sua omnipotência para abrir espaço à autonomia das criaturas. Por isso o mal, a destruição do bem, acontece, mas é da nossa estrita responsabilidade. Assim, em vez de culpar Deus das nossas perversões, devemos procurar antes seguir as leis que Ele nos deu para melhorar o mundo.

Só que Deus, quando se limita para nos dar espaço, não abandona a suas criaturas, sempre tirando bem das ruínas que vamos causando. A coragem dos heróis, a paciência dos mártires, a genialidade dos criadores e a perspicácia dos líderes não seriam necessários na ausência de mal. A virtude, a grandeza e a dignidade manifestam-se apenas no meio das dificuldades. Só no fundo negro se vê o brilho das estrelas.

Isso chega ao ponto de o pior dos males gerar o maior bem. Até Wagner e Nietzsche, não propriamente religiosos, admitiram que o supremo horror é a morte de Deus. Segundo os cristãos, essa maldade extrema aconteceu realmente no Calvário; e dela resultou a salvação da humanidade. Jesus, o Deus feito homem, conviveu aqui com o nosso mal, e foi vítima dele, para nos indicar a forma de lidar com isso. Assim o bem só triunfa numa vida vivida na companhia de Cristo vivo.

Comentários
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  • António Gomes
    11 nov, 2023 Guimarães 08:20
    Há alguns anos costumava lê-lo (creio no DN) onde cheguei a comentar alguns artigos. Depois o advento das redes sociais baralhou sobremaneira (como em tudo, umas coisas melhor, outras pior) o status quo (que o diga o board da Victoria's Secret 😊 quando na sequência do Me Todo e duma certa "Inclusão" se afundou no mercado). Sou católico de baptismo, que se desviou pela inerente irreverência juvenil. Nesta altura do campeonato (e para não me alongar muito) direi que ao longo da História o maior denominador comum tem sido a manipulação. Já tive aqui à mesa de casa um agradável repasto com três jovens irmãos Muçulmanos do Líbano que com a minha mulher e filha tivemos uma agradável conversa - convergente no amor ao próximo. Também, à mesma mesa, tive recentemente um casal cujo marido é Judeu e a esposa Cristã. O referido marido admitiu mesmo, durante a conversa, a não existência de Jesus Cristo. À qual eu respondi serenamente que isso não é importante: se existiu, ou se terá sido EXACTAMENTE como a bíblia (ou mesmo a História) conta; o importante é a mensagem que nos chega e que diverge significativamente doutras: de amar o próximo e, sobretudo, PERDOAR OS INIMIGOS. Estou cem por cento de acordo com as suas palavras, porém, tal como o pai que alerta o filho para o cuidado de não pôr o dedo para não se queimar, também a sua crónica só será perceptível para os que, através do mal de pôr o dedo, já se terem queimado, Assim, o mal é necessário ao crescimento moral do ser humano. Não há alternativa, pois essa é condição inerente ao nosso "ADN": sofrer para aprender. Abraço
  • Luis Oliveira
    10 nov, 2023 CESAR 15:27
    Hoje todos os telejornais de TODO o mundo deveriam abrir com estas palavras…! Na oficina das redações dos jornais, rádios, televisões, também tem umas ferramentas MUITO importantes oferecidas por Deus… ESPERANÇA, FÉ, BONDADE... Mas raramente os Editores têm coragem de as usar, são perigosas, se o fizerem "perdem" das estatísticas os "dependentes" do Alarme, da calunia, do sensacionalismo, do odio, da violência e enfim da morte…! Obrigado Dr. João pelas suas palavras SEMPRE Lucidas.