09 jul, 2024 • Alfredo Teixeira
Nas últimas semanas, as transmissões em direto de competições de futebol constituíram, nas diferentes médiaesferas, uma quase «liturgia das horas» - tempos fortes de transcendência desportiva, segundo uma métrica quase diária, que incrementam uma enorme vaga de energia emocional coletiva. A sucessão de transmissões do jogo-espetáculo ofereceu-se como um sociodrama trágico, com os seus heróis, no sucesso e no fracasso, e com os coros de comentadores, construindo uma narrativa que diz muito das mitologias que tecem os nossos imaginários.
Nos últimos anos, tenho coordenado, na Universidade Católica Portuguesa, a «Cátedra Manuel Sérgio - Desporto, Ética e Transcendência», oportunidade favorável ao aprofundamento dessa original filosofia do desporto que Manuel Sérgio, do alto dos seus 91 anos, nos continua a oferecer. Os últimos dias foram uma ocasião oportuna para regressar à leitura de um texto de Manuel Sérgio, «Filosofia do Futebol», publicado, pela primeira vez, em 2009, reeditado em 2023, com o patrocínio da Federação Portuguesa de Futebol. Nas vias que o livro abre, encontramos uma das suas mais vulgarizadas afirmações, «não há jogos, há pessoas que jogam», rasto de uma ampla visão humanista do desporto.
O campo desportivo foi sempre portador de alguns dos mais salientes valores modernos. No século XIX, descobrimos uma particular aliança entre desporto e moral – a performance desportiva foi pensada como uma via de musculação moral do indivíduo. Nos itinerários históricos mais recentes, o corpo atlético, de alto rendimento, tornou-se metáfora da superação de si e lugar de sacralização dos quase ilimitados recursos tecnocientíficos – basta comparar o corpo do jovem futebolista Ronaldo, quando estava a competir em Portugal, com o corpo tecnicamente produzido, uns anos mais tarde, em ligas mais competitivas.
Na nossa experiência contemporânea, aprofundou-se a ideia de performance desportiva como «superação de si» e como «realização de si», num contexto em que ética, espiritualidade e técnica conhecem combinações inéditas. Este desporto de alto rendimento tem uma particular relação com a experiência do humano inacabado. Este contexto torna necessário continuar a pensar o desporto enquanto manifestação humanista e expressão de um modo de habitar o mundo, onde vulnerabilidade e superação, competição e cooperação se implicam.
Ainda antes da formulação da sua tese sobre a motricidade humana, Manuel Sérgio, em 1976, na editora Seara Nova, publicava «Desporto e Democracia», uma obra que respirava o espírito do tempo. O seu prefaciador, Baptista-Bastos, é incisivo na apresentação: «O título do livro é uma escolha, a imagem preferencial da reflexão feita sobre o desporto entendido como cultura – e em democracia». No quadro de uma teoria crítica da modernidade, Manuel Sérgio, pensava as dimensões míticas do desporto, criticando o que nele possa ser alienação ou unidimensionalidade. Para superar esta situação, o desporto precisava de se humanizar: «O desporto surge, nos dias que passam, como uma das formas sóciohistóricas do vasto movimento humanista».
A voz desassombrada de Manuel Sérgio dá voz à crítica da razão desportiva – quando esta se aliena na simples produção de corpos rentáveis, na perpetuação de antagonismos tribais e passa a ser, preponderantemente, reflexo das dinâmicas de mercado ou dos poderes em exercício. O filósofo nunca desistiu da energia utópica do desporto: «é preciso, imperioso e urgente que o desporto acorde do seu sono de “instalação”, numa sociedade em que não passa de “reflexo”, e não sabe ser “projeto”». Nesta perspetiva, Manuel Sérgio convida a uma compreensão do corpo-sujeito do atleta como lugar de resistência, de inconformidade, e não apenas reflexo de estruturas sociais ou objeto de disciplina.
Situando a prática desportiva no plano da motricidade humana, enquanto movimento intencional e solidário de transcendência, toma posição frontal contra o individualismo e o narcisismo que superabundam no espetáculo desportivo: «aos imperativos totalitários do dinheiro, sem quaisquer outros valores, contrapomos aqueles valores que nos permitem aliar a ciência à consciência, a competição à cooperação, contra as idolatrias do consumo e do indiferentismo pelo sofrimento alheio». Esta visão do desporto como promessa, como «ca(u)sa comum», dá corpo a um humanismo muito próximo da voz do Papa Francisco, na encíclica «Fratelli Tutti»: «Se não conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma comunidade de pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens, desabará ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à mercê da náusea e do vazio […]. O princípio “salve-se quem puder” traduzir-se-á rapidamente no lema “todos contra todos”».
Em diversos contextos nacionais e regionais, encontramos desportos que têm uma grande capacidade para representar sentimentos coletivos. Nessa condição, podem ser laboratórios para a adesão a valores necessários à construção da «ca(u)sa comum», em vez de guetos de antagonismo. Basta recordar como Nelson Mandela se serviu do potencial agregador do râguebi, na África do Sul, para a construção de uma sociedade democrática inter-racial, superando, pela reconciliação, um passado de conflito e ressentimento. A interpretação destas vias de superação está no cerne da filosofia de Manuel Sérgio: «no âmbito dominantemente ético do futebol, importa que, no treino, na competição e na justiça desportiva, se criem ações instituintes da vitória, simultaneamente sobre o adversário e sobre nós mesmos». No cruzamento entre o culto da performance e a sociedade do espetáculo, a alta competição desportiva pode ser lida como ritualização ou teatralização de um modo de civilização, a civilização da competição tecnocrática. Em alternativa, Manuel Sérgio convida à revalorização da conduta desportiva, na sua natureza festiva e na sua estrutura cooperativa. Esse é, também, o desporto que podemos ser.
Alfredo Teixeira, antropólogo