09 ago, 2024 • Pedro Vaz Patto
A propósito da indignação causada pela paródia da Última Ceia inserida na cerimónia da abertura dos Jogos Olímpicos de Paris, volta a suscitar-se a questão do sentido e limites da liberdade de expressão no confronto com o respeito pelos sentimentos religiosos.
É verdade que, de um modo geral, a questão não foi colocada nesse plano, como se as pessoas indignadas necessariamente advogassem a proibição ou criminalização de uma exibição como essa: estava, antes, em causa a chocante incoerência de um espetáculo tão gravemente ofensivo para um tão grande número de pessoas com o espírito de unidade e fraternidade universal próprio do olimpismo, uma escolha que, de acordo com esse espírito deveria unir e não fraturar.
No entanto, não deixa de ser oportuno refletir sobre essa questão da relação entre a liberdade de expressão e o respeito pelos sentimentos religiosos. O comunicado do Vaticano que criticou esse aspeto dessa cerimónia não deixou de afirmar o valor da liberdade de expressão, mas também que esta encontra um limite no “respeito pelos outros”.
Essa reflexão também é oportuna porque o atual governo espanhol anunciou recentemente o seu propósito de eliminar os crimes contra os sentimentos religiosos atualmente previstos no Código Penal desse país. Essa criminalização (não se trata da blasfémia, como ofensa a uma única religião tida por verdadeira, o que seria próprio de um Estado confessional, mas de determinadas ofensas aos sentimentos de um crente de uma qualquer religião, o que será compatível com a laicidade do Estado) vigora em países como a Alemanha, a Itália ou Portugal.
Paris 2024
“A liberdade de expressão, que obviamente não é po(...)
O Código Penal português contém uma secção de crimes contra os sentimentos religiosos e aí define o crime de ultraje por motivo de crença religiosa (no artigo 251.º), no sentido de “escárnio” de uma pessoa por motivo da sua crença religiosa e de “profanação” de lugar ou objeto de culto ou veneração religiosa, e o crime de impedimento, perturbação ou de ultraje de ato de culto (no artigo 252.º), no sentido de “vilipêndio” ou “escárnio” de ato de culto religioso.
Também se discute atualmente a eventual criminalização da queima pública de livros sagrados de uma qualquer religião, neles se incluindo o caso frequente de queima do Corão. Na Suécia, tem-se considerado que esse gesto está coberto pela liberdade de expressão. Na Dinamarca, pelo contrário, alterações legislativas recentes vieram criminalizar tal prática.
É criticável, porém, que a mover o legislador seja mais o perigo de perturbação da ordem pública, decorrente da reação de correntes extremistas a tais gestos. do que o genuíno respeito pelos sentimentos religiosos de quaisquer pessoas, mesmo que as reações destas não causem nenhum perigo de perturbação da ordem pública (na verdade, nos Códigos Penais alemão e português a definição dos crimes contra os sentimentos religiosos também supõe o perigo de perturbação da ordem pública, o que, além do mais, pode gerar uma discriminação quanto à religião atingida).
Em contraste com a tendência para alargar ao máximo a proteção da liberdade de expressão quando está em causa a ofensa aos sentimentos religiosos, assistimos em vários países à tendência para alargar a punição do chamado “discurso de ódio”. O Código Penal português define como crimes, no seu artigo 240.º, o incitamento ao ódio ou violência, assim como a injúria ou difamação, contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica. A Comissão Europeia propõe atualmente alargar a lista de crimes puníveis pelo direito europeu de modo a nela incluir esses tipos de crimes relativos ao “discurso de ódio”.
Paris 2024
Organização dos Jogos Olímpicos de Paris pediu des(...)
A jurisprudência francesa, nesta linha, tem feito a distinção entre a ofensa a determinada pessoa por causa da sua religião (no mesmo plano da ofensa a uma pessoa por causa da sua raça) da ofensa a figuras, livros, símbolos ou atos objeto de veneração religiosa, que serão cobertos pela liberdade de expressão. Esquece, porém, esse critério que para os crentes autênticos esse tipo de ofensa ao que na sua vida encaram como o mais precioso dos seus bens fere mais do que uma ofensa à sua própria pessoa (a qual não é adorada ou venerada). E esquece também que o respeito pelos sentimentos religiosos, para além do respeito pela pessoa, é uma exigência da liberdade religiosa que não pode ser desprezada.
De qualquer modo, há que delimitar bem a fronteira entre a crítica da religião em geral, ou de uma religião em particular, crítica que deve ser livre, da ofensa para com as pessoas e seus sentimentos religiosos. Sabemos como, em vários países de maioria muçulmana, a punição da blasfémia serve para punir uma qualquer crítica à religião islâmica (e tem até servido para perseguir minorias religiosas, mesmo quando nem isso está em causa).
De modo paralelo, a punição do “discurso de ódio” também tem conduzido a abusos, como se devesse ser punido um juízo negativo sobre a prática homossexual (é conhecido o caso de uma antiga ministra finlandesa, acusada e ainda não definitivamente absolvida, por ter emitido esse juízo com base nas Escrituras cristãs).
Há, pois, que distinguir a livre discussão de ideias (sobre a religião, sobre o Cristianismo, sobre o Islão, sobre a prática homossexual) do que é ofensivo para com as pessoas, e também para com os seus sentimentos religiosos.
Às ideias (mesmo que sejam erróneas, injustas, chocantes ou absurdas) pode responder-se no plano do debate racional e da argumentação. Esse debate é sempre salutar numa sociedade aberta, livre e democrática. Ninguém deve recear esse debate, sobretudo quem está seguro de que, como afirma a declaração do Vaticano II sobre liberdade religiosa, "a verdade se impõe pela sua própria força, que penetra nos espíritos de modo ao mesmo tempo suave e forte".
Outra coisa são os insultos. Aos insultos não pode responder-se no plano do debate de ideias. Aos insultos não pode responder-se senão com o silêncio ou com outro insulto. Um insulto pode ferir tanto ou mais do que uma agressão física. E uma ofensa aos sentimentos religiosos (que se distingue da crítica a uma qualquer religião) também pode ferir tanto ou mais do que uma ofensa pessoal. E dessa forma se gera o ódio e se facilita, mais ou menos diretamente, a violência. Não é assim que se fortalece a sociedade livre, aberta e democrática.
Em suma, a liberdade de expressão não justifica tudo, nem toda e qualquer ofensa aos sentimentos religiosos.