Siga-nos no Whatsapp
Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
A+ / A-

Escola: a hora da inovação compulsiva

05 mai, 2020 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


Parece que o modelo de escola a tempo inteiro chegou ao fim do seu controverso reinado e que novos modelos de gestão das escolas se impõem para evitar uma rutura humana e financeira. Assim, esta é a hora da verdadeira descentralização, talvez da municipalização plena.

Todos reconhecemos que os dias e os meses que se seguem serão de longas horas de reflexão, de escolhas cirúrgicas e de equilíbrios improváveis. Estamos, e estaremos, muito gratos a todos os profissionais do Serviço Nacional de Saúde, à coragem dos doentes que batalharam ao seu lado para querer viver, e às empresas e funcionários que mantiveram a nossa vida segura, organizada, alimentada, limpa. Também não esqueceremos a energia persistente dos pais de família a trabalhar e a ensinar em casa, nem todos os bravos habitantes de lares e outras estruturas de acolhimento.

E, agora que a batalha da implosão do Serviço Nacional de Saúde parece ganha, está na hora de inventar um mundo novo e o governo – muito mais ameaçado por um “Passos Coelho” do que por um “Churchill” – terá de estimular as medidas de recuperação de quase todos os sectores da sociedade. Dentre estes, a escola joga o habitual papel de go-between e é imprescindível assumir as mudanças que é necessário operar para que possa funcionar em confiança, inclusão, equidade e competência educativa.

Como a ciência aconselha a permanência do afastamento profilático, as escolas terão de trabalhar por turnos, de um reduzido número de horas, para garantir grupos pequenos nas salas e contenção durante os recreios. Como as turmas portuguesas são grandes e muitos equipamentos escolares envelhecidos e precários, é imprescindível um ajustamento restrito da carga horária presencial – a gerir com as famílias –, a introdução de atividade física orientada nos intervalos, a multiplicação de funcionários para garantir a ordem e a limpeza nos espaços comuns, tudo pensado, também, para proteger os adultos e as famílias, sem rebentar com o orçamento.

Parece que o modelo de escola a tempo inteiro chegou ao fim do seu controverso reinado e que novos modelos de gestão das escolas se impõem para evitar uma rutura humana e financeira. Assim, esta é a hora da verdadeira descentralização, talvez da municipalização plena, já que as decisões devem ser tomadas com um grande conhecimento das realidades mais locais e com a colaboração plena dos docentes, dos funcionários e dos pais. Certamente os professores mais experientes poderão gerir os currículos e reanalisar os programas em torno das aprendizagens essenciais de modo a discernir aquilo que será trabalhado em modo presencial e aquilo que pode ser encaminhado para a telescola e as plataformas de interação à distância.

Para poder rentabilizar adequadamente a telescola, é necessário acordar que conhecimentos e que competências serão tratadas televisivamente, para evitar retirar liberdade curricular às escolas, mas, mesmo assim, garantindo que a televisão é um verdadeiro facilitador da aprendizagem. Esta rentabilização precisa de muita afinação e, desde já, a escolha da RTP Memória parece uma secundarização de um elemento de trabalho que pode ser funcional e está a custar dinheiro ao contribuinte. É imprescindível aumentar a capacidade técnica da iniciativa, alguma da qual pode ser partilhada com as outras televisões e com o ensino privado. Depois, é preciso rever os horários tendo em atenção os turnos que as escolas vão adotar, definir quais as atividades e o lugar que terão no desenvolvimento dos alunos e na aprendizagem das matérias, com um máximo de autonomia e autorregulação para estes.

Esta nova escola implica que o Estado vai ter de investir nalgumas contratações, no fornecimento de meios informáticos aos alunos daquelas 23% de famílias que não têm acesso à internet e que o tempo de trabalho online tem de ficar muito bem adaptado às idades – talvez deva ser residual para as crianças mais pequenas – mas, sobretudo, continuar a investir na formação dos professores, repensar os mega agrupamentos verticais e o lugar e papel dos diretores. É também o momento em que pode aproveitar para reforçar o papel de uma escola mais “verde” na saúde dos alunos, a começar por recuperar uma boa alimentação (que pode seguir para casa), e por promover a educação para a saúde física e mental, restaurando a medicina escolar e fortalecendo a psicologia educacional.

Este é, por alto, o retrato do novo mundo escolar: a escola, como a conhecíamos, se calhar não vai regressar, mas podemos ter uma outra, melhor, mais justa, mais motivadora, mais inteligente, mais acolhedora. Por isso mesmo, não podemos gastar dinheiro e tempo a tentar reproduzir em novos suportes o que tínhamos, por muito que estivesse a inovar. Podemos aproveitar recursos, como o mentorado profissional, já que os professores mais velhos dificilmente poderão voltar às turmas, mas podem ajudar a reconverter e a integrar os colegas mais novos. O melhor disto tudo é que, na sua maioria, está já previsto na lei, falta-nos a mudança de mentalidade, revendo os modos de organizar e realizar o trabalho, refundando-os. E ter em consideração que, numa sociedade avançada, os pais podem ser ajudados a educar, mas não devem fazer o papel de professores.

Finalmente, não será fácil progredir para uma escola mais cooperativa quando a proximidade física deve ser evitada, mas o distanciamento, e o vai e vem de outros confinamentos, não impedem que se reveja o papel e as modalidades da avaliação, algumas das quais podem ser seriamente cooperantes, como estimular os alunos do ensino secundário a acompanhar as tarefas escolares de colegas mais novos e, depois, integrar esse trabalho no sistema de candidatura a um estágio pago ou ao ensino superior.

Precisamos mudar as escolas, essa eternamente “impossível” tarefa, e uma crise desta envergadura, é “a” oportunidade. Durante muito tempo, e num tempo muito difícil, passou-se a mensagem da exclusiva responsabilização dos professores, como os únicos construtores do sucesso, ocasional, e os infelizes reprodutores do insucesso escolar, tão evidente na escola de massas. Mas, as escolas são das sociedades, que nelas entram todas as manhãs e, às vezes, saem dali, em direção a coisa nenhuma. No entanto que outro sítio somos nós capazes de criar para garantir abrigo ao futuro comum?

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.