05 jan, 2022
A voz humana é um instrumento de comunicação sofisticado que tem grande impacto no bem-estar e no desenvolvimento das pessoas: o tom, o ritmo, a dicção, as respirações... transmitem um conjunto complexo e polivalente de emoções, sentimentos, atitudes e ideias e, assim, facilita a nossa ligação às outras pessoas, de forma profunda e duradoura. O mais belo exemplo disso são as trocas de vocalizações entre os pais e os seus filhos recém-nascidos, uma experiência, subtilmente adaptada, de uma humanização incrível e poderosa. Mas a voz humana, quando começa a escassear, ou a surgir distorcida ou ilusória, também sinaliza desadaptação e perda de sentido da realidade.
No início desta pandemia a forçada privação na relação com as “vozes” surgiu-me com os confinamentos e o seu distanciamento social e percebi-o ao reconhecer que precisava de ligar a rádio para restabelecer a tranquilidade. Não se tratava de ouvir notícias ou de me distrair com música, mas a necessidade básica de escutar vozes humanas: procurava programas de conversa, alguns muito fraquinhos, criados para o momento; outros, formatos antigos, sobre temas que não me interessam particularmente e que, ainda assim, foram bem-vindos. Agora, adormeço no início dos meus programas favoritos e só procuro estatísticas de vez em quando. Empenho-me em encontrar listas de canções, dando-me conta que, se não é certo que a endemia já tenha chegado, como proclamou a voz autorizada do Presidente da República, aumenta o ritmo com o qual exprimimos o desejo de uma nova normalidade. Agradeço às vozes que me ajudaram a ultrapassar esta difícil fase, mas uso a minha para sublinhar a necessidade que temos de discutir o que queremos em matéria de saúde mental para o nosso país, a relevância de nos motivarmos comumente para ambicionar esse crucial indicador de desenvolvimento cultural e de reclamar um investimento em políticas públicas no campo certo.
A pandemia também me ensinou a explorar as possibilidades do ensino à distância para descobrir que a supressão da linguagem gestual nos obriga a um esforço intenso no uso da nossa voz, uma tentativa nem sempre bem conseguida de passar, além dos conteúdos, todas as experiências, e os gestos, que devem acompanhar a descoberta intelectual, facilitando a capacidade de abstração. E, depois, no regresso ao ensino presencial, dei-me conta de que o écran não me permitiu conhecer bem os meus alunos, que perdi muito dos seus olhares e dos seus trejeitos. Foi-me difícil interpretar as sintonias e corrigir as dessintonias que tanto afetam a relação pedagógica, o esforço de concentração e o ajustamento do ensino à aprendizagem. Cada docente terá vivido este afastamento forçado da sala de aula à sua maneira, mas o momento para pensarmos que escolas e que universidades realmente nos fazem falta não deve ser adiado, a começar pela dureza das condições de trabalho dos professores. Esse reequilíbrio deve ser visto como uma condição de progresso de todos, certamente beneficiando a escala humana de relação que os alunos precisam para se desenvolver bem e aprenderem a mais relevante competência, a cooperação. A forma como esta é conseguida deve fazer parte dos cardápios da avaliação, para os quais reclamamos ampla reforma.
Por fim, das mudanças que me aconteceram e sobre as quais pensei, nestes quase dois anos, guardarei enquanto puder o gosto e o hábito de caminhar pela cidade sem destino. Exercitar o corpo com a distância e os obstáculos, trabalhar os sentidos com a variedade de estímulos, exercitar a mente com as novidades, acalmar a ansiedade. Esta estratégia de sobrevivência nasceu de um esforço quotidiano de prevenção face às ameaças à saúde – esse bem dos bens – novas e antigas. Foi também uma tentativa de colmatar a ausência da voz e da presença do médico de família e do especialista que já antes ajudou a reconquistar e a manter o bem-estar físico e mental. Também neste campo precisamos de decisões firmes e bem orientadas para devolver os cuidados de saúde regulares a toda a gente, provada que está a confiança dos portugueses no SNS e a sua prontidão para as vacinas, mas também a sua necessidade de acompanhamento presencial. Precisamos de garantias de que a pandemia das doenças graves por diagnosticar será controlada e que os “outros” doentes também são utentes.
Das experiências individuais da pandemia é possível determinar alguns padrões e identificar necessidades comuns. Estas são áreas que devem merecer uma discussão, cabal e séria, nestas próximas eleições. Oxalá os partidos nos proponham a sua representação com uma voz credível.