24 abr, 2021 • Marina Pimentel
A procuradora Cândida Almeida, responsável pelo processo das FP-25, considera que "eram inequívocas" as provas de que Otelo Saraiva de Carvalho era líder de uma associação terrorista.
Falando no programa da Renascença 'Em Nome da Lei', a antiga diretora do DCIAP diz não ter dúvidas de que, nos crimes violentos que foram cometidos pelo braço civil armado do chamado Projeto Global, nomeadamente os 17 homicídios, entre eles um bebé de 4 meses, "Otelo, e os restantes membros da direção político militar da organização, foram autores morais”.
Cândida Almeida recorda “uma reunião na Serra da Estrela em que todos estiveram encapuzados, Otelo tinha o número sete, hoje seria possível fazer o ADN do capuz, mas ele também nunca negou que lá tivesse estado. Estiveram todos a discutir a estratégia para o futuro, um dos documentos, o documento 16, é o documento da violência, definia quem levava a cabo os assaltos e relativamente aos homicídios, o Otelo tem escrito pela sua mão que se contentava em saber qual o perfil do indivíduo a abater. Portanto ele sabia perfeitamente, ele e os outros da direção político militar, sabiam perfeitamente quem fazia o quê, por isso pode dizer-se que foram autores morais.”
O processo das FP-25 de Abril esteve em debate no Em Nome da Lei, a propósito do lançamento esta semana do livro “Presos Por um Fio-Portugal e as FP-25 de Abril”, da autoria do advogado Nuno Gonçalo Poças.
O livro faz a reconstituição dos sete anos de atividade criminosa das FP-25 de Abril, que entre 1980 e 1987 fez mais de uma dezena de homicídios, de atentados à bomba e assaltos a bancos e viaturas de transporte de valores, com o argumento da luta contra o capitalismo. A procuradora do processo recorda que as FP-25 não só mantinham contactos com a ETA, como adotaram alguns dos seus métodos, nomeadamente “os cárceres do povo, buracos debaixo da terra coberto por cortiça, onde iriam colocar as pessoas que tencionavam raptar”.
A descoberta dos cárceres do povo, onde as FP-25 de Abril tencionavam aprisionar os políticos e empresários cujo rapto programavam,” foi a razão pela qual o ministério público precipitou a operação de desmantelamento da organização”, a Operação Orion, lembra a procuradora entretanto jubilada. Foram constituídas arguidas, por associação terrorista, 73 pessoas.
Foi o primeiro megaprocesso nacional. Mas na opinião de Cândida Almeida “não foi um imbróglio jurídico, como o chamou Mário Soares. A procuradora recorda que “o problema da investigação era o excesso de prova e estabelecer as ligações entre todos os factos reunidos”.
Não foram tempos fáceis para a Justiça. O juiz de instrução, Martinho de Almeida Cruz, trocava todos os dias de local para dormir, e chegou a ter de pernoitar em viaturas da polícia. A procuradora Cândida Almeida conta que também ela recebeu várias ameaças das FP-25 de Abril, duas delas diretas.” Os quatro pneus do carro dos agentes que me faziam segurança apareceram furados”, conta “e mais tarde, quando 10 membros fugiram da prisão, deixaram muita documentação para trás e entre essa documentação havia um papel que dizia qualquer coisa como: ‘O Martinho e a Candidinha continuam a fazer das suas e deviam ter uma lesão permanente, porque não sou adepto da pena de morte, para nunca mais se esquecerem.’”
O julgamento das FP-25 durou cerca de dois anos, no Tribunal de Monsanto em Lisboa. Otelo e Pedro Goulart foram considerados fundadores e dirigentes da organização terrorista, tendo sido condenados a 15 anos de prisão cada um. Acabaram, no entanto, amnistiados em 1996, bem como todos os outros membros da organização. Facto que podem explicar que o país praticamente tenha esquecido os tempos em que teve uma organização terrorista, liderada por um dos heróis de Abril. “Foi essa amnésia coletiva, o que mais impressionou o autor do livro”. Nuno Gonçalo Poças, que começou a investigar o tema apenas para fazer um ensaio e acabou a escrever um livro, diz que “há dois fatores que podem explicar essa amnésia- o facto de o poder político querer passar uma esponja sobre o assunto e a vontade dos portugueses em olhar para a frente, depois de terem passado por um período difícil marcado por uma crise económica de mais de 10 anos, com duas intervenções do FMI, a morte de um primeiro-ministro e de um ministro da Defesa, e depois a entrada na CEE, a sociedade sentiu a necessidade de olhar em frente”.
Quem não conseguiu esquecer e seguir em frente foram as vítimas e os seus familiares. Manuel Castelo Branco, filho do Diretor das Prisões, assassinado à porta de casa por dois membros da associação terrorista, diz que durante muito anos era ele a única pessoa em Portugal a falar das FP-25 e dos crimes cometidos. Mais ninguém falava do assunto”. Defende que “o regime devia ter sido mais exigente para com Otelo, pelo facto de ele ter sido um dos heróis de Abril, e não o contrário, como aconteceu”. E lembra que os cadernos de Otelo Saraiva de Carvalho, uma das bases documentais da acusação de associação terrorista, “foram decifrados pelo próprio perante o juiz de Instrução”.
Como exemplo da forma injusta como os familiares das vítimas dos crimes das FP-25 foram tratados pelo Estado, dá o exemplo da viúva do agente Militão, assassinado pelas FP-25 de Abril. A viúva a dada altura pediu um subsídio ao Estado, para poder sobreviver, que não lhe foi concedido.
Ao assassino do marido, indultado pelo Presidente Mário Soares, foi-lhe, no mesmo ano, concedido um subsídio. "Isto gera uma revolta e uma dor imensas", conclui.