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Em Nome da Lei
O direito e as nossas vidas em debate. Um programa da jornalista Marina Pimentel para ouvir sábado às 12h.
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O que está em causa na revisão constitucional
Em Nome da Lei - ouça aqui o programa na íntegra

Em Nome da Lei

Revisão constitucional. "Era necessário fazer uma certa lipoaspiração à Constituição"

18 nov, 2022 • Marina Pimentel


Constitucionalistas analisam as propostas do PS e do PSD de revisão da Constituição. Debate dos projetos arranca em dezembro, após aprovação do Orçamento do Estado para 2023.

As propostas de revisão constitucional dos dois principais partidos podem ser incompatíveis com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos. É essa a opinião de Teresa Violante.

A constitucionalista lembra que a jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo apenas admite o isolamento compulsivo de doentes infetados com doença contagiosa como última solução. Haveria "problemas sérios de incompatibilidade, não pelo facto de o isolamento poder ser decidido por uma autoridade administrativa (versão do PS), mas porque não aparece formulada como uma decisão de último rácio", explica a especialista à Renascença.

"O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem jurisprudência relativamente a estas questões, sobretudo nas decisões infecciosas, e há jurisprudência relativamente a infeções por VIH/SIDA, mas ainda não há em relação à pandemia Covid. Essa jurisdição é muito clara relativamente a isso, tem de ser uma solução de último recurso. O Estado tem de demonstrar que, naquele caso concreto, não haveria nenhuma outra solução possível que não a privação da liberdade.”

O que propõem PS e PSD?

Quer o projeto do PS quer o do PSD querem resolver, através da oitava revisão constitucional, a questão do isolamento em situação de emergência sanitária, para que não se repitam no futuro os problemas jurídicos surgidos com as medidas aprovadas durante a pandemia e nomeadamente com o Tribunal Constitucional.

O projeto do PS concede às autoridades de saúde o poder de decretarem o confinamento obrigatório de pessoa portadora de doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio e propagação de doença ou infeção graves.

Já o do PSD considera que a decisão só pode ser determinada por um juiz. A versão socialista prevê apenas a intervenção da autoridade judicial em recurso.

O PSD prevê também que o estado de sítio ou de emergência possam ser declarados em situação de emergência de saúde pública. O PS não alarga as situações em que podem ser decretados os estados de exceção.

Medidas anti-Covid não tinham apoio constitucional?

Tanto o constitucionalista Paulo Otero como o seu colega da Universidade Católica, Jorge Pereira da Silva, convergem na ideia de que, com as soluções que apresentararam, PS e PSD fazem uma confissão implícita de que grande parte do que foi feito durante a pandemia, sem estado de emergência, não tinha suporte constitucional. E de alguma forma o Tribunal Constitucional está nos últimos meses a declarar essas situações como desconformes com a Constituição.

Na avaliação do mérito das soluções apresentadas, Paulo Otero critica sobretudo o projeto socialista. Defende que não faz sentido incluir um artigo na Constituição a admitir o isolamento de pessoas com doença contagiosa. Para o especialista em assuntos constitucionais, a melhor solução seria alargar a declaração de estado de emergência a situações de saúde pública.

"Alargar o artigo 19, admitindo expressamente o estado de necessidade sanitária, remetendo para o legislador a competência para depois o densificar”, explica Otero. O professor da Faculdade de Direito de Lisboa defende que “nem a Constituição de 1933 foi alguma vez tão longe”.

Em convergência com o seu colega constitucionalista, Teresa Violante diz que “isto é uma credencial para um estado autoritário de emergência sanitária e só não me escandaliza por aí além porque não acredito que o texto que conhecemos (da autoria de uma comissão técnica liderada pelo antigo presidente do Supremo Tribunal de Justiça António Henriques Gaspar) seja aprovado pelos deputados.”

E o "imbróglio" dos metadados?

Paulo Otero defende que, “na base de tudo isto, há um vício desta Constituição e um vício que a revisão poderia aproveitar, e era a meu ver uma benfeitoria necessária para corrigir. Era necessário fazer uma certa lipoaspiração à Constituição, porque ela tem coisas a mais.

"É excessivamente detalhada, qualquer dia a Constituição Portuguesa fica igual à brasileira, não uma Constituição de princípios, mas uma Constituição-regulamento, com um detalhe, com um pormenor… Não é este o sentido de uma Constituição.”

O constitucionalista da Universidade Católica Jorge Pereira da Silva é muito crítico também da solução proposta para “outro dos imbróglios com o TC”, que os deputados do PS e do PSD querem resolver através da revisão constitucional: a legislação dos metadados, já chumbada duas vezes pelo Tribunal Constitucional.

Os metadados são dados de tráfego, de localização, para identificar um determinado assinante ou utilizador e dizem respeito a diferentes formas de comunicação, desde correio eletrónico a mensagens de texto, passando por chamadas telefónicas.

O que está em causa é dar o acesso a esses dados aos serviços de informações, para salvaguarda da defesa nacional e prevenção de atos de sabotagem, terrorismo e criminalidade altamente organizada.

Há intromissão nos direitos fundamentais dos portugueses?

PS e PSD concordam em fazer depender de uma ordem judicial esse acesso. E ambos também propõem que os cidadãos tenham controlo sobre os seus próprios dados: o PS através da inscrição do direito ao esquecimento digital e o PSD pelo direito ao apagamento dos dados pessoais -- garantias que Jorge Pereira da Silva diz serem redundantes.

"Os partidos têm de decidir se querem uma revisão amiga dos direitos fundamentais ou se querem uma revisão para os restringir. É claro que depois vêm dar o direito ao esquecimento, mas não dão coisíssima nenhuma, porque o direito ao esquecimento resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Regulamento Geral de Proteção de Dados. E portanto nós podemos repetir aqui na Constituição Portuguesa, mas o máximo que conseguimos é eventualmente muita discussão sobre o alcance do direito num sítio e noutro.”

A professora Teresa Violante também reconhece que é mais uma intromissão nos direitos fundamentais. Mas lembra que "Portugal é o único, ou um dos únicos países da União Europeia, a não permitir aos serviços de informação o acesso aos metadados”.

Teresa Violante considera justificada a oitava revisão constitucional, quer para responder às duas questões (metadados e confinamento), quer numa versão mais vasta. E lembra que a Constituição alemã, datada de 1949, já foi alterada mais de 60 vezes.

Esta revisão vai ficar pelo caminho?

Jorge Pereira da Silva conclui dizendo não acreditar que a revisão constitucional vá por diante

“Efetivamente tenho dúvidas de que este processo vá em frente. Acho que há alguns sinais de que pelo menos o Partido Socialista não tem grande vontade de avançar. A verdade é que todas as revisões são feitas por acordo entre os dois principais partidos, PS e PSD, e depois da crise financeira, da intervenção da Troika, da geringonça, há um afastamento claro desses partidos que constituíam o centro. E não vejo porque é que agora, tendo o PS maioria absoluta, vai entrar num acordo com o PSD. Não vejo que vantagens políticas é que possa ter nisso.”

As declarações integram o último episódio do programa de informação da Renascença Em Nome da Lei, e que na edição deste sábado debate a revisão constitucional. Sete partidos já entregaram projetos, cuja discussão começará em dezembro, depois da aprovação do Orçamento do Estado para 2023 (OE 2023).

E afinal, o que está em cima da mesa?

Quer os socialistas quer os social democratas queram aproveitar o processo aberto pelo Chega para viabilizar leis que têm merecido uma sucessiva rejeição do Tribunal Constitucional e em relação aos quais o Presidente da República tem chamado a atenção do Parlamento.

O PS quer uma revisão ordinária e deixar para uma extraordinária outras alterações constitucionais, tendo no entanto avançado com algumas alterações em matéria de direitos e deveres fundamentais, incluindo entre as tarefas fundamentais do Estado, a erradicação da pobreza, a coesão territorial e o combate às alterações climáticas.

Em matéria de Saúde, incluiu os cuidados paliativos e a saúde reprodutiva entre os direitos constitucionalmente protegidos. Em matéria de Ensino, além do básico, o pré-escolar e o secundário universal passam também a ser obrigatórios e gratuitos. O bem estar animal ganha garantia constitucional.

O projeto de revisão do PS é, ainda assim, muito menos ambicioso do que o do PSD, que propõe uma reforma do sistema político que passaria pela alteração do mandato do Presidente da República para um único mandato, de sete anos, mas com mais poderes, nomeadamente o de nomear o governador do Banco de Portugal, PGR e o presidente do Tribunal de Contas.

A proposta social democrata passa ainda por uma redução do número de deputados, a possibilidade de realizar referendos no mesmo dia das eleições, o direito de voto aos 16 anos e a extinção do cargo de representante da República para as Regiões Autónomas. Prevê também “o recurso de amparo” para o Tribunal Constitucional, contra "decisões judiciais violadoras de direitos, liberdades e garantias”.

Esta última medida é criticada pelos três constitucionalistas ouvidos no Em Nome da Lei, sob o argumento de que pode dar origem a uma avalanche de processos, provocando o colapso do Tribunal Constitucional por manifesta falta de meios.

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