04 mar, 2023 • Marina Pimentel
O arrendamento coercivo pelo Estado de casas particulares consideradas devolutas é inconstitucional? Colocámos a pergunta a quatro constitucionalistas. As diferenças de opinião podem ser demonstrativas da divisão que a medida terá quando o diploma chegar ao Tribunal Constitucional.
Paulo Mota Pinto não tem dúvidas de que o Presidente da República deve remeter o diploma sobre o arrendamento coercivo para o Tribunal Constitucional. “Penso que está suscitada uma dúvida suficientemente séria e relevante para merecer uma fiscalização preventiva”, diz o antigo juiz do Tribunal Constitucional entre 1998 e 2007.
E se o PR não tiver essa iniciativa, devem ser os deputados do PSD a ter a iniciativa de pedir a fiscalização abstrata sucessiva? O social democrata, recém regressado à bancada parlamentar do seu partido, responde que” sim, não só por razões políticas mas também para clarificação”.
Tal como Paulo Mota Pinto, também o constitucionalista da Universidade Católica Jorge Pereira da Silva entende que o arrendamento compulsivo é uma restrição severa a um direito constitucionalmente garantido.
"Para percebermos como é uma restrição severa, basta olhar para o que teria de ser a materialidade concreta do arrendamento compulsivo. Como é que isto funciona? Só há duas formas disto funcionar ou ameaçar os proprietários de crime de desobediência, se não abrirem a porta voluntariamente, ou arrombando as portas dos imóveis. Não há outra forma de fazer isto funcionar. Depois, se a casa não estiver imediatamente em condições de ser habitada, obras compulsivas, decididas e executadas pelo Estado, a custos definidos pelo Estado, e depois arrendamento a inquilinos escolhidos pelo Estado, a preços definidos pelo Estado.”
Jorge Pereira da Silva não vê, por isso, como é que a medida pode passar no crivo do Tribunal Constitucional ,a não ser que o Estado indemnize os proprietários pela posse coerciva.
"Ou há indemnização, e não estou a falar da renda, estou a falar de uma indemnização contemporânea do ato de tomada de posse administrativa, ou então não vejo como é que esta medida pode superar o teste da proporcionalidade e em particular o da necessidade.”
Embora reconhecendo que uma posição definitiva sobe a constitucionalidade da medida só será possível depois de ser conhecida a proposta em concreto, o constitucionalista da Faculdade de Direito de Lisboa Miguel Prata Roque não partilha das dúvidas dos seus colegas constitucionalistas da faculdade de Direito de Coimbra e da Universidade Católica.
A mais controversa das medidas do pacote “Mais Habitação” não é inconstitucional ,segundo ele, porque não fere o núcleo essencial do direito de propriedade. ”O proprietário mantém a posse do bem e até a fruição parcial. Porque se o bem for alvo de arrendamento, o que acontece é que o proprietário aufere os lucros dessa mesma atividade económica. Ainda que essa atividade seja obrigatória, coerciva”.
O antigo Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros reconhece no entanto que o Tribunal Constitucional dificilmente considerará a medida como necessária, tendo em conta que o Estado é o proprietário com mais casas devolutas. No entanto ,o constitucionalista entende que ,face à situação de emergência de habitação que vivemos, não é exequível a utilização para arrendamento do parque público.
"Nós estamos numa situação de emergência. Não podemos esperar. Infelizmente, já tivemos várias situações de emergência; a crise económica internacional, a pandemia Covid, a entrada da Rússia em território ucraniano , e eu não sou nada favorável aos regimes de exceção constitucionais, mas o que é verdade é que há pessoas a sofrer, pessoas que não sabem onde é que vão dormir na próxima semana, pessoas que não têm que comer. E o Estado não pode dizer assim : ’ Olhem eu vou demorar seis anos a construir casas ou a recuperar o edifício do Ministério da Educação ou a recuperar um quartel que está abandonado. E tu vais ficar aí à espera durante seis anos a passar frio, a passar fome”.
Embora admitindo que só a partir do desenho concreto da medida poderá esclarecer-se se o arrendamento coercivo de casas devolutas é ou não constitucional, a investigadora da Universidade de Erlangen-Nuremberga Teresa Violante admite também que o arrendamento coercivo é justificável, face à situação de exceção que o país vive.” São medidas de urgência ,cuja constitucionalidade, na minha opinião, vai depender do seu desenho concreto, designadamente de se apresentarem ou não como medidas eventualmente de caracter temporário, transitório, para responderem a este contexto de urgência excecional , até que o Estado tenha tempo para de facto poder efetivar o seu compromisso de renovar todo o seu edificado, e de fazer construção de nova habitação pública .Porque temos apenas dois por cento de habitação pública em Portugal. Somos dos Estados com menos habitação pública.”
O argumento da emergência não colhe, contrapõe Paulo Mota Pinto. O antigo juiz do Tribunal Constitucional e agora deputado do PSD diz que estado de necessidade era entregar casas devolutas para acabar com bairros de barracas.
“Falam em estado de necessidade? Mas não é isso que está em causa. Não se trata de usar casas de pessoas que as têm para valorizar ou para dar mais tarde aos filhos, para tirar pessoas de bairros de barracas. Esses bairros já foram eliminados há anos. Não está em causa a dignidade da pessoa humana, nesse sentido. Do que se trata é diminuir as rendas, poder-se viver mais longe ou mais perto dos centros urbanos, é essa a questão que está aqui em causa.”
Também Jorge Pereira da Silva fala em excesso de dramatização quanto à crise que vivemos em matéria de habitação. E diz que o direito de propriedade defende sobretudo o que o arrendamento coercivo põe em causa; isto é, o direito a dispor do bem, atingindo de forma desproporcional quem tem casas devolutas.
"Há um sacrifício desproporcional e anormal dos proprietários de prédios devolutos. Uma pessoa pode ter três casas de férias, uma na praia, outra na montanha e outra noutro sítio qualquer, que não é afetado. Uma pessoa pode viver em Lisboa e ter uma casa em Cascais, onde vai passar o fim-de-semana, não é afetado. Uma pessoa pode viver sozinha num palácio de 30 divisões, não é afetado. Mas um proprietário que tenha um imóvel devoluto, um T2, a pensar eventualmente na velhice ou nos filhos, ou noutra coisa qualquer, vai ter a sua casa arrendada compulsivamente”.
A antiga assessora do Tribunal Constitucional Teresa Violante admite que a medida anunciada por António Costa é questionável. Mas não a considera transformadora ou revolucionária. E dá como exemplo o que está a ser feito na cidadã alemã de Berlim, para combater o problema da habitação.
"Muito mais revolucionária é a medida que foi aprovada em referendo em Berlim, com o objetivo de socializar o parque habitacional de todas as empresas de habitação com fins lucrativos que detêm mais de 3 mil unidades habitacionais. E portanto neste momento há uma obrigação jurídica sobre o legislador de Berlim de criar legislação para socializar essa habitação; ou seja transformar propriedade privada em propriedade pública, de cerca de 220 mil apartamentos."
Os quatro constitucionalistas estiveram no programa Em Nome da Lei, que este sábado debateu o arrendamento coercivo de casas devolutas, a medida mais polémica do pacote “Mais Habitação”, recentemente anunciado pelo Governo, para fazer face ao problema da falta de habitação a preços acessíveis.