05 mai, 2023 • Marina Pimentel
O grupo criado para coordenar a resposta da Igreja aos abusos sexuais de crianças não impôs qualquer condição à Conferência Episcopal. E o contrário também é verdade.
A coordenadora do novo grupo VITA, Rute Agulhas, conta que quando foi convidada por D. José Ornelas foi-lhe dito explicitamente que constituiria a equipa como entendesse e que, em equipa, decidiriam qual o melhor caminho.
“Não me foi feito nenhum pedido em concreto, a não ser este pedido que acho que é muito óbvio de acolher e acompanhar as vítimas, tudo o resto ficou em aberto para ser definido pela equipa que eu constituísse, e assim tem sido até ao dia de hoje. Não houve, até ao momento, qualquer tentativa de sugestionamento ou de pressão.”
Sublinhando que a equipa é totalmente autónoma, a psicóloga Rute Agulhas não admite qualquer tipo de condicionamento no trabalho que o grupo VITA vai desenvolver ao longo dos próximos três anos e deixa uma garantia:
"No primeiro momento em que me sentir pressionada ou manipulada, é nesse dia que saio."
O grupo VITA prestará contas do seu trabalho porque quer que os portugueses o acompanhem, em relatórios a divulgar duas vezes ao ano. Fará relatórios sobre a sua atividade de seis em seis meses; o primeiro vai ser apresentado publicamente em dezembro.
"Será um relatório que será apresentado publicamente, ficam todos desde já convidados para a primeira apresentação pública em dezembro, em data concreta ainda a definir, e será basicamente um relatório de atividades típico: o que fizemos, quantas pessoas atendemos, que tipo de encaminhamento foi feito. Algumas descrições das pessoas em termos de idades, para termos aqui alguma caracterização…”
Questionada sobre se haverá a identificação das vítimas ou dos agressores, Rute Agulhas assegura: ”Não, como é óbvio não.”
Um dos objetivos do grupo VITA, adianta, é capacitar as estruturas da Igreja para que, no futuro, as vítimas possam sentir confiança para fazer denúncias de eventuais abusos.
“Durante a existência deste grupo, o objetivo é capacitar entidades, como as comissões diocesanas, e os próprios institutos, dar-lhes formação, capacitar os diferentes elementos que são também profissionais, é importante que se refira isso, das áreas da psicologia, da psiquiatria, do direito, para que daqui a algum tempo estas comissões sejam olhadas pelas pessoas em geral com a mesma confiança que tiveram pela comissão independente e que espero tenham perante este grupo.”
O grupo VITA tem já trabalho programado para dois anos e meio e calcula funcionar durante três. Mas poderá durar mais tempo, se esse período não for suficiente para acabar definitivamente com a cultura de ocultação de abusos, esclarece a psicóloga.
“Este encobrimento que se observa na Igreja, neste passado da Igreja, é um encobrimento típico da problemática. Não sei se três anos são suficientes. Se não forem cá estaremos para assumir isso e para definirmos ações para mais tempo.”
O advogado penalista David Silva Ramalho, que faz parte do grupo, explica que a sua função no VITA será sobretudo criar mecanismos que acabem de vez com esta cultura de ocultação.
"Vamos criar mecanismos adaptados que facilitem a denúncia, aquilo que habitualmente se chamam os canais de 'whistleblowing', que facilitem a denúncia, para que essa denúncia, sendo recebida pelas pessoas certas, que serão as pessoas que encaminharão as denúncias, e que não seremos forçosamente nós, que estejam devidamente treinadas para dar seguimento interno e externo a estas denúncias"
Este tipo de canais, continua, "essa cultura de cumprimento normativo e de denúncia, de factos criminosos, tem de ser implementada na Igreja. É uma cultura, como se disse na conferência de imprensa, de tolerância zero com este tipo de práticas.”
Embora o objetivo seja sobretudo olhar para a frente, David Silva Ramalho vai também avaliar as queixas e denúncias que foram feitas. E ver se algumas ainda podem ser objeto de procedimento criminal.
“Ver o que ainda se pode fazer quanto ao que está para trás, processos que ainda possam instaurar-se ,crimes que ainda sejam suscetíveis de ser perseguidos criminalmente, o que passa por avaliar a questão da prescrição, do exercício do direito de queixa, se for esse o caso, por questões de aplicação da lei no tempo que se colocam , porque estes crimes foram mudando ao longo do tempo, e portanto há problemas de aplicação da lei no tempo que determinam que os factos são julgados de acordo com a lei que vigora ao tempo da sua pratica, exceto se a lei posterior for mais favorável. Tudo isso terá de ser identificado.”
O grupo VITA vai encaminhar as vítimas de abusos para terapia clínica. A ideia é criar "uma bolsa de psicólogos e psiquiatras inteiramente paga pela Igreja”, mas “enquanto o grupo não está formado, e em certas zonas do país”, a coordenadora Rute Agulhas admite “o recurso à rede do SNS”.
Rute Agulhas explica que não haverá critérios para validar as denúncias e as queixas. Os psicólogos e psiquiatras que fazem parte do grupo VITA não vão fazer avaliação pericial das pessoas e dos seus testemunhos, mas tentar perceber as necessidades das vítimas.
"A partir do momento em que nos chega uma suspeita de abuso sexual ou de algum crime enquadrado neste contexto, nós temos naturalmente de reportar essa situação, e temos aqui o dr. David que poderá clarificar um pouco melhor esta questão de um ponto de vista penal, e teremos naturalmente de a encaminhar do ponto de vista canónico, para ser instaurado um processo", diz a psicóloga.
"Não nos compete a nós, como acontece noutros setores da nossa atividade profissional, tecer considerações sobre se o relato é credível ou não é credível e porquê. Porque isso só pode ser feito com uma avaliação aprofundada. Não é numa entrevista de meia hora ou de uma hora ou mesmo que seja mais prolongada, e temos de ter muito definidos os limites da nossa intervenção."
David Silva Ramalho, o advogado penalista que faz parte do grupo VITA, explica que não está ainda definido se vão reencaminhar todas as denúncias para o Ministério Público (MP) ou apenas aquelas que ainda não prescreveram. Sublinha que, quanto às que já prescreveram, o direito penal já nada pode fazer.
A missão do grupo VITA é, sobretudo, prevenir novos casos de abusos sexuais na Igreja. "O processo penal não vem resolver os abusos sexuais na Igreja, os que estão para trás. Não vem resolver todos. Vem responsabilizar e é isso que interessa neste momento. Vem identificar e fazer com que os arguidos e os suspeitos respondam por práticas que se provem."
"Mais do que responsabilizar o que está para trás, nós temos de prever e evitar o que vem para a frente. E essa, eu diria, é a grande missão, porque os crimes prescritos infelizmente não há nada a fazer quanto a eles.”
A partir do próximo dia 22 de maio passa a estar disponível uma linha telefónica exclusiva para denúncias de abuso na Igreja, através do número 915 090 000 e também através do endereço eletrónico geral@grupovita.pt. A linha telefónica estará disponível de segunda a sexta, das 9h às 18h.
A psicóloga Joana Alexandre, outro dos membros do grupo VITA, dá como exemplo o que já está a acontecer no Desporto, para explicar o que pode ser feito na Igreja para prevenir novos abusos de crianças.
“No fundo, o que a Igreja vai fazer é ficar de algum modo alinhada com aquilo que são algumas políticas que já começam a existir no nosso país. Ou seja, nós já temos, no âmbito do desporto, um roteiro para a proteção de crianças e jovens que tem sido delineado nos últimos anos e que está agora a ser posto em prática. Esse roteiro passa também um pouco por estes mecanismos, parte da formação até já foi feita, a formação às federações ,a criação de guardiões que serão as pessoas que, no âmbito do desporto, estão identificadas como as que vão receber uma queixa de um jovem atleta...”
O grupo VITA quer substituir uma cultura de ocultação por uma cultura de proteção das vítimas de abusos. E a estratégia de prevenção passa por intervir junto dos abusadores, tentando reabilitá-los. O psicólogo Ricardo Barroso faz questão de sublinhar que é uma intervenção que deve surgir “paralelamente a qualquer responsabilização judicial que possa estar em curso".
"Não há aqui a intenção, de forma alguma, de escamotear ou de ilibar seja quem for. Trata-se de uma intervenção que é paralela a qualquer intervenção judicial.”
Ricardo Barroso acredita que é possível reabilitar, através de intervenção clínica, muitos dos abusadores. Mas não tem dúvidas de que alguém que é suspeito deve ser afastado preventivamente de qualquer função em que existao risco de contacto com crianças. ”Acho que a resposta mais adequada é afastar preventivamente o suspeito da prática de abusos. É preferível antecipar eventuais problemas.”
As declarações dos elementos do grupo VITA e da sua coordenadora, Rute Agulhas, foram proferidas ao programa Em Nome da Lei, que é transmitido aos sábados por volta do meio-dia pela Renascença e que está sempre disponível em todas as plataformas de podcast.