16 jun, 2023 • Marina Pimentel
Crianças de cinco anos contam que os pais lhe deram uma tareia com o cinto, foram fechadas em quartos escuros e que lhes colocaram os dedos em tomadas. Os castigos corporais são crime há 16 anos em Portugal. Mesmo os mais leves têm consequências físicas e psicológicas, mas continuam a ser muito tolerados pela sociedade.
A advogada e professora de Direito da Família Ana Sofia Gomes explica que “dar uma bofetada a um filho é crime, mesmo que seja um comportamento isolado".
"Está criminalizado pelo crime de violência doméstica, tal como no caso do marido que dá uma bofetada à mulher ou o namorado que agride a namorada. É crime".
Desde 1977 que o poder de castigar moderadamente os filhos deixou de fazer parte do que o Código Civil enumera como responsabilidades parentais e há 16 anos que o Código Penal prevê o crime de maus tratos a menores - e não é só a lei portuguesa. Também organizações internacionais de que fazemos parte, como a ONU, exigem a eliminação de todos os castigos corporais, por mais ligeiros que sejam.
No entanto, um estudo feito em 2022 pelo Instituto de Apoio à Criança indica que 30 por cento dos pais portugueses se reserva o direito de dar um tabefe aos filhos quando estes desobedecem, são malcriados ou não cumprem as regras da família. Dulce Rocha, a presidente do Instituto de Apoio à Criança (IAC), defende que é muito por ignorância que há pais que ainda batem nos seus filhos.
“É muito mais fácil escrever num texto que é proibido do que depois convencer as pessoas de que não o devem fazer. Penso que é, ainda, a falta de conhecimento que faz as pessoas, por causa da desobediência ou por causa de uma birra, baterem nos seus filhos.”
E há quem bata de forma extremamente violenta. A psicóloga Mónica Pires revela que nos estudos que fez , "a fazer perguntas abertas a crianças a partir dos cinco anos e até aos oito/nove, os relatos feitos pelas crianças eram muitas vezes chocantes, em pleno século XXI".
"Não estamos a falar de uma palmada, mas de cintos, de tomadas, de eletrodomésticos, de fechar uma criança num quarto escuro. Aqueles castigos que estão no nosso imaginário de infância ainda hoje em dia são praticados e muitas vezes estamos a falar de um estatuto socioeconómico médio”, explica.
A psicóloga, especializada no funcionamento da família e aconselhamento parental, diz que os castigos físicos têm um efeito muito negativo sobre as crianças. Podem provocar várias consequências, desde depressão até perdas de rendimento escolar e de autoestima.
“Há uma revolta que se cria. A baixa autoestima pode afetar o desempenho escolar, obviamente. Quando afeta o desempenho escolar, normalmente, os professores são excelentes aliados. Estão alerta e encaminham. Quando há problemas de comportamento, problemas psicológicos que são visíveis, esses meninos têm a ajuda mais rápida. Porque o problema é visível e é disruptivo na sala de aula. Os que interiorizam e se isolam ou que desenvolvem sintomas depressivos, ansiosos, passam mais despercebidos e muitas vezes não têm ajuda rapidamente.”
Mónica Pires explica que os filhos de pais autoritários crescem num ambiente de medo. A psicóloga, que há muito se dedica à terapia familiar, explica que esses filhos podem tornar-se também agressores.
"Como é que posso dizer a uma criança que bater é errado ou que não me pode bater, enquanto mãe, se eu lhe estou a bater. Há uma aprendizagem por observação e por modelo. E essa criança em casa pode depois adotar comportamentos violentos com o irmão mais novo ou fazer 'bulling' na escola. Bater ensina a bater.”
Além das sequelas psicológicas, os castigos corporais podem ter consequências físicas. A procuradora jubilada Dulce Rocha lembra o estudo científico que indica que as crianças que são alvo de castigos corporais têm o organismo mais inflamado.
"Ao longo de seis ou sete anos, as crianças estudadas, agora já adolescentes, revelam um nível de inflamação superior, porque segregam excessivamente uma substância que provoca a inflamação - o cortisol. Esse estudo chegou a conclusões muito importantes.”
Autora do livro “Mãe de sete”, Mariana Avillez explica que tem algumas estratégias para que evitar que o caos se instale e não se crie um ambiente em que possa perder a cabeça.
”O que fazemos é, quando eu estou no limite, o meu marido entra em ação, diz uma piada, desanuvia o ambiente e tratamos do problema mais tarde. Por vezes, em alturas em que os miúdos até já deviam estar a dormir. Mas tem de ser.”
A falta de tempo é um problema para as famílias. Mariana Avillez fala na dificuldade das famílias, em geral, em terem tempo no dia a dia para os pais e filhos conversarem e conta que, com frequência, usa o fim do dia, em que "faz de Uber" a transportar os filhos para as suas várias atividades, para falar individualmente com cada um dos sete. O facto de ter uma família numerosa ajuda, porque os filhos mais velhos acabam por ser também educadores dos irmãos mais novos.
"Havendo o esforço e o cuidado de educar bem os mais velhos, essa tem sido um bocadinho a minha experiência e, depois, ver como isso se difunde para as camadas mais novas faz com que seja mais fácil pelo exemplo que eles veem de nós. As crianças são o reflexo daquilo que veem em casa.”
O programa Em Nome da Lei, da jornalista Marina Pimentel, é transmitido aos sábados ao meio-dia pela Renascença e está sempre disponível nas plataformas de podcast.