24 jun, 2023 • Marina Pimentel
O Governo mente, quando diz que há um compromisso no PRR para retirar atos como a consulta jurídica e a elaboração de contratos, da competência exclusiva dos advogados, permitindo que sejam feitos por meros licenciados em Direito.
A afirmação é da bastonária da Ordem dos Advogados. Fernanda de Almeida Pinheiro pergunta “Porque é que os médicos não tiveram de mudar os atos próprios nos seus estatutos? Se existia uma obrigatoriedade de se mudar a lei dos atos próprios, para todos, para podermos todos aceder à profissão ,então porque é que umas ordens não têm de mudar e a nossa tem? Esse é o primeiro ponto. Em segundo lugar, o PRR em momento algum fala dos atos próprios, fala apenas da criação de sociedades multidisciplinares. Que é outra coisa completamente diferente.”
A bastonária diz que a proposta de Lei do Governo com os novos Estatutos da Ordem dos Advogados vai legalizar a procuradoria ilícita. Em declarações ao programa Em Nome da Lei revela que essa foi mesmo uma justificação que lhe foi dada no Ministério da Justiça.
"A advocacia há muito que convive e vai assistindo, sempre muito preocupada e chamando a atenção para o problema, ao grassar da procuradoria ilícita."
Isso foi, adianta, "uma das desculpas que nos deu o Ministério da Justiça. Como era um crime que não conseguiam controlar, então o melhor era legalizar a situação. Nós ficámos estarrecidos! Então se é assim, o melhor é legalizarmos também outros crimes que não conseguimos controlar bem, tipo tráfico de estupefacientes, ou coisa que o valha, já que não conseguimos um combate eficaz legalizamos o tipo e a coisa fica sanada.”
A possibilidade de meros licenciados em direito poderem passar a fazer consulta jurídica é uma das grandes preocupações da bastonária relativamente à proposta de novos estatutos apresentada pelo Governo ao Parlamento. Mas entre as medidas de liberalização e desregulação, a mais preocupante, é a possibilidade de permitir a negociação e a cobrança de créditos por funcionários de empresas de cobrança.
"Entregar a cobrança de créditos a pessoas que não têm o mínimo de código de deontologia para observar, que utilizam todos os meios que têm ao dispor para fazer cobranças coercivas que passam por perseguir as pessoas, tentando obter delas o pagamento de dívidas que podem estar prescritas que podem não existir… Há regras que são cumpridas pelos advogados. E se eles não as cumprirem, existe uma Ordem que vai verificar se o advogado cumpriu ou não cumpriu com o seu código e o seu estatuto, coisa que não existe em nenhuma destas empresas de cobrança, que na maioria dos casos até nem estão sedeadas em Portugal."
Fernanda de Almeida Pinheiro já disse ao Governo que permitir que não advogados pratiquem atos que são da competência exclusiva dos inscritos na Ordem, é a linha vermelha.
"Nós dissemos claramente ao Ministério da Justiça que tudo o resto que está na proposta de lei, nós conseguimos negociar, estas três situações de desregulamentação, de retirada dos atos próprios dos advogados ,porque está em causa a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos , isso não pode ser.”
Essa, destaca a bastonária, "é a questão fulcral, tudo o resto, mais para um lado ou mais para o outro, nós conseguimos sempre entender-nos porque somos pessoas que primamos pelo diálogo”.
A supervisão da Ordem dos Advogados por um órgão composto maioritariamente por não advogados é outra das medidas da Proposta de Lei do Governo que está a ser muito contestada pela classe.
Luís Paes Antunes, que até há pouco tempo liderou uma das maiores sociedades portuguesas de advogados, admite que até pode ser benéfica a entrada de não inscritos na Ordem. Mas nunca em maioria, como quer o executivo.
"Não pode ser com maioria nem com presença obrigatória .Porque isso não faz sentido. As decisões da Ordem ,como de todas as ordens, são sempre sindicáveis pelos tribunais. E não foi uma nem duas ,nem 10,nem 37 vezes, que os órgãos competentes, neste caso os tribunais, foram chamados.”
Outro dos advogados convidados pelo Em Nome da Lei, Garcia Pereira, fala numa vingança a prazo de António Costa contra a Ordem dos Advogados, pelo facto de ter denunciado como se estava a morrer nos lares em Portugal, no período da Covid.
"Não comamos queijo, porque quando as Ordens, e designadamente a dos advogados, e depois também a dos médicos, tomou essa posição, a reação que teve o Primeiro-Ministro António Costa , o grande democrata António Costa, foi proclamar numa entrevista ao jornal Expresso em Agosto de 2020 - ’As Ordens Profissionais não existem para fiscalizar o Estado.’ E portanto nós temos aqui uma vingança a prazo, para calar organismos que são incómodos para os poderes e, em particular, a Ordem dos Advogados.”
Garcia Pereira considera que a proposta dos novos estatutos é mais uma machadada na advocacia livre e independente.” O Governo o que está a fazer é a destruir a profissão do advogado livre e independente, que aliás ele tem vindo a afastar dos processos e da Justiça. É preciso também dizer isso. A privatização da ação executiva deu o resultado a que nós assistimos hoje. Que é uma vergonha. São verdadeiras associações de malfeitores, perseguindo devedores que têm de assumir pagamentos à força.”
Luís Paes Antunes critica também a imposição de uma remuneração obrigatória mínima de 950 euros dos estágios que os licenciados em Direito têm de fazer, para aceder à profissão.
Não estão em causa as grandes sociedades de advogados, que muitas vezes até remuneram bastante acima do teto imposto agora pelo Governo, mas a incapacidade dos advogados que exercem em nome individual, e que constituem cerca de 85% dos inscritos na Ordem dos Advogados, em poderem arcar com essa despesa.
"Ou vamos ter uma redução abrupta, para não dizer abissal do número de estagiários, será o fecho da profissão, exatamente o contrário do que se pretendia, ou vamos ter o Governo, o que eu acho até a solução mais provável, criar via IEFP um sistema de bolsas, porque caso contrário a coisa não vai funcionar.”
São declarações ao programa Em Nome da Lei, para o qual o secretário de Estado Adjunto e da Justiça também foi convidado, não tendo no entanto aceitado o convite, alegando razões de agenda.
O programa Em Nome da Lei é transmitido aos sábados, ao meio dia, pela Renascença, e pode ser ouvido também em todas as plataformas de podcast.