14 fev, 2021
A semana que passou teve uma reviravolta na forma como o primeiro-ministro passou a tentar gerir a pandemia, ao pedir a fixação de linhas vermelhas bem definidas. Também nos trouxe novidades e explicações sobre as razões de atrasos nos rastreios, lentidão nas mudanças de normas e entreves a maior testagem. E tudo acaba por nos levar à questão das quintinhas e quintas que tantas vezes determina a gestão do país e, infelizmente, tem determinado a resposta à pandemia de Covid-19.
Durante meses, António Costa recusou estabelecer linhas vermelhas claras que determinassem um novo confinamento. Em maio, à medida que o país desconfinava e, nas conferencias de imprensa, quando dizia que não teria rebuço de dar passos atrás e lhe perguntávamos o que poderia levar a novos confinamentos, nunca estabeleceu metas.
"Temos uma linha vermelha que é: não podemos voltar a fechar a economia como fechamos em março e em abril", repetiu várias vezes António Costa ao longo de vários meses.
“A primeira linha vermelha tem a ver com a evolução dos óbitos. Não há bem maior do que a vida e esse é essencial”, afirmava o primeiro-ministro em setembro, quando o país entrava em situação de contingência. Nesse mês, morreram 158 pessoas por Covid em Portugal. Em dezembro, quanto tínhamos mortes diárias na casa das oito dezenas, ainda respondeu que as mortes iriam baixar, mas demoravam mais a baixar do que os contágios que estavam a descer.
Agora, ultrapassadas as linhas vermelhas de um novo confinamento e das centenas de mortes diárias, o primeiro-ministro quer linhas vermelhas que avalizem o desconfinamento. E, na terça-feira, pediu aos cientistas quer habitualmente participam nas chamadas reuniões do Infarmed que cheguem a um consenso sobre essas linhas vermelhas de casos, internamentos e ocupação de camas de cuidados intensivos a partir das quais se devem decidir confinamentos e desconfinamentos.
Lendo ou ouvindo a entrevista de Alexandre Lourenço, presidente da Associação de Administradores Hospitalares à Renascença e ao Público, percebemos porque é que até agora nunca houve linhas vermelhas: porque simplesmente nunca existiram e não existem dados sobre a capacidade total dos hospitais, porque nunca houve uma avaliação cruzada dos planos de contingência, porque o Governo não quis formar uma equipa coordenadora da resposta à Covid. Tal como nunca avançou, apesar de ter anunciado, com uma equipa que coordene a resposta aos doentes não-Covid que, por medo de uns e falta de capacidade de outros, continuam a não ir às urgências, às consultas ou aos rastreios que lhes podem salvar a vida.
“Existiu uma perceção de que as estruturas regulares da Administração Pública seriam suficientes para responder à pandemia. E eu creio que esse pecado original veio a resultar numa grande incapacidade quer de planeamento, quer de operacionalização de meios. Desde cedo alertámos para a necessidade de criar uma equipa de coordenação entre as partes do Ministério da Saúde, isso não veio a suceder. Em setembro os hospitais entregaram os planos de contingência e ainda não existe sequer hoje o número da soma de recursos que estes hospitais tinham. Ficámos um pouco descalços e sem dar informação necessária, mesmo à decisão política, para tomar medidas mais drásticas em termos de confinamento”, disse Alexandre Lourenço.
Como também afirmou o presidente da Associação de Administradores Hospitalares, não têm nem podem ser os gabinetes ministeriais a tratar da transferência de doentes. Tal como não tem nem deve ser uma reunião diária da ministra com diretores clínicos, como passou a acontecer há poucas semanas, que deve fazer o ponto da situação e resolver problemas.
Cedo, nesta crise sanitária, se percebeu que a Direção-Geral da Saúde não estava à altura da resposta que a situação exigia e ainda só se estava a ver uma pequena parte do filme. Mas o primeiro-ministro ficou preso ao princípio de não mudar generais a meio da batalha. E chegamos ao ponto de o Governo ter de vir dar recados públicos para que a DGS mude orientações sobre testes e rastreios.
Também cedo se percebeu que, dificilmente, o Governo ia ter consensos que apoiassem as decisões políticas. Foi, assim, logo no início quando uma longuíssima reunião do Conselho Nacional de Saúde não chegou a consenso sobre ou encerramento ou não das escolas e acabou por fazer uma recomendação pública que no dia seguinte foi contrariada pelo primeiro-ministro.
A solução encontrada pelo Governo depois desse episódio foi criar as chamadas reuniões do Infarmed, mas afinal também nunca foi daí que surgiu um entendimento cientifico que sustentasse decisões políticas. A dada altura, as reuniões foram suspensas, depois retomadas com transmissão em aberto das intervenções dos especialistas. Tivemos uma reunião em que um dos especialistas, Manuel Carmo Gomes, aconselhava o encerramento das escolas, e outro, Henrique de Barros, desvalorizava o impacto da mobilidade no aumento de casos. E, assim, chegamos à situação em que o Governo decidiu na mesma semana manter abertas as escolas e fechá-las.
"Tenho acompanhado as reuniões da Infarmed e parecem-me uma reunião de apresentação de resultados e deve ser muito difícil para um político entender o que se está ali a dizer. Não há uma síntese. Parece um congresso. Cada um explica o que aconteceu na sua área de trabalho e depois? O primeiro-ministro deve pedir aos especialistas que apontem caminhos. Depois, pode seguir ou não. Assim estas reuniões são pouco úteis, assim como aquela peregrinação depois dos responsáveis de cada partido. Se vão ali para ouvir, não sei porque é que estão ali depois num desfile! É um cansaço!", dizia, a 21 de janeiro, o presidente do conselho de ética no Hora da Verdade.
Também já se percebeu que entre os especialistas ouvidos no Infarmed e os clínicos há, no mínimo, leituras da realidade com diferentes perspetivas. Como assinala Carlos Fiolhais, no Diário de Notícias. "Se queremos apurar a opinião da ciência, num assunto interdisciplinar, como é o combate à pandemia, que tem várias dimensões, desde a infeciologia, à bioquímica, à epidemiologia, à prática médica, há que criar um conselho científico, onde todas estas pessoas estejam presentes e possam dialogar entre elas para chegarem a um consenso do que há fazer, do que é certo ou do que é errado, para se fazer melhor a seguir".
Lendo e cruzando informações e opiniões, parece sensato como aconselha Fiolhais, a criação do conselho científico, o qual, como diz Jorge Soares, deve apontar caminhos, aos quais, depois da decisão política, seja dado seguimento por uma comissão executivo como, desde março, pede Alexandre Lourenço. Talvez assim fosse possível ultrapassar quintas e quintais e estabelecer linhas vermelhas credíveis que ajudem a tomar decisões políticas previdentes.
Vamos tarde? Sim, para alguns iremos. Mas também vamos a tempo para muitos. É que a Covid, afinal, não é uma batalha, é uma guerra que não sabemos quanto tempo vai durar e é preciso aproveitar os momentos de alguma acalmia para recuar, reagrupar e reorganizar para ser melhor no próximo ataque. E, como diz um ditado chinês, os sábios aprendem com os erros dos outros, os inteligentes com os próprios erros e só os idiotas é que não aprendem nunca.