21 out, 2022 • José Pedro Frazão
Josephine Goube criou uma organização que ajuda refugiados através da tecnologia, mas decidiu dar um novo passo capaz de aprofundar a sua intervenção neste domínio. Com a Sistech, começou a ajudar exclusivamente mulheres refugiadas e tendo em conta a natureza feminina da crise de refugiados ucraniano dir-se-ia que a sua ação é ainda mais valiosa. Mas Josephine está preocupada com todas as outras crises e sobretudo com a possibilidade de dar emprego a estas mulheres na área tecnológica. Nas Conferências do Estoril, em setembro, defendeu que empregar mulheres refugiadas faz sentido, chamou a atenção para a proteção de refugiados na Europa e incitou os jovens a fazerem a diferença nas empresas.
Tem desafiado a ideia de uma “crise de refugiados”. Quão diferente é esta crise face a outras?
Acho que podemos falar de facto numa crise de refugiados devido ao número de pessoas em causa. Estamos a falar em mais de seis milhões de pessoas que estão subitamente fora da Ucrânia. Em 2015 desafiei a utilização desse termo propondo a expressão "crise de hospitalidade". Termos um milhão de pessoas a chegar num ano, se analisarmos a capacidade de um conjunto de países acolherem esse fluxo, era gerível. Hoje em dia usamos o termo "crise ucraniana" e não "crise de refugiados" e isso é perturbador. Temos mais de seis milhões de mulheres e crianças que estão neste momento na Europa, separadas das suas famílias, a terem que se integrar num contexto que adivinhamos ser uma guerra longa.
Tem havido um apoio humanitário de curto prazo, o que é essencial, mas a questão prende-se com a forma como estamos a pensar no longo prazo, sabendo do desejo de reunião das famílias e de um eventual regresso. Temos que realmente refletir sobre o longo prazo nesta crise.
Que tipo de testemunhos tem recolhido das mulheres ucranianas com quem tem contactado especialmente após 24 de fevereiro?
Ouço histórias muito diferentes. O padrão que emerge é o de muitas mulheres com qualificações, o que não é surpresa. Sempre tivemos muitas mulheres qualificadas entre os refugiados. Não falam a língua local, mas, na sua maioria, têm um bom domínio do inglês. O que é comum com outros refugiados é a incerteza sobre a continuação da sua presença nos locais onde estão agora estão. Há uma fração pequena que tentam encontrar um trabalho nesses locais e pretendem integrar-se.
Muitas procuram um emprego que apenas garantam um rendimento por algum tempo para depois voltarem. Voltar a curto prazo é algo que depende da situação de cada uma delas, porque cada história é diferente.
Há muitos relatos de mulheres que voltaram de vários países europeus para a Ucrânia, mas ficaram na zona oeste do país, apenas para ficarem mais próximas de casa. Tem também esses relatos?
Sim e, sem generalizar, esta é uma espécie de história clássica dos refugiados. Aconteceu o mesmo com os afegãos no ano passado e com os sírios em 2015. O padrão é o mesmo para qualquer ser humano, independentemente da nacionalidade. Eles partem [do seu país] porque têm medo de morrer e fogem pelas formas associadas aos seus recursos. Se forem ricos, podem apanhar um avião, ter vários passaportes e poderão ir mais longe. Caso contrário, vão tentar apenas atravessar a fronteira para estar próximos de casa até ao momento em que possam voltar, porque não falam outra língua e não têm muitos recursos. O padrão é ir até onde podem ir, de acordo com os recursos que têm, e voltar assim que possível. E a esperança de voltar vai desvanecendo à medida que o tempo passa.
Entre os primeiros dias e o primeiro ano, 80% deles quer voltar. Nem todos podem e na maior parte dos casos não conseguem voltar. Entre o primeiro e o terceiro anos, 60% das pessoas quer regressar e na verdade 40% regressam. Ao cabo de três anos, encontramos uma degradação lenta do número de pessoas que querem voltar, porque o país está destruído e porque elas seguiram com as suas vidas. Isto funciona por ciclos e penso que não será diferente com os refugiados ucranianos, ao nível dos traumas mentais e da forma como aceitam a jornada em que se encontram.
O que é específico nos ucranianos é a sua proximidade à Europa, por estarem na fronteira com a União Europeia. São tratados de forma diferente face a outros refugiados à luz da lei, porque podem trabalhar desde o primeiro dia. E isto é completamente diferente da forma como o sistema tem trabalhado a questão dos refugiados. Em média, um refugiado demora dois anos até obter o direito a trabalhar e a ser mesmo reconhecido como refugiado.
Estou muito curiosa para conhecer os dados da implementação da diretiva de 2001 que permite proteção temporária por dois anos e uma integração e desenvolvimento, beneficiando estes refugiados em comparação com a forma como tratamos outros refugiados. Não tenho respostas e gostaria de conhecer os dados e perceber se conseguimos replicar este modelo para outras nacionalidades.
Qual é realisticamente a fração de mulheres que podem conseguir trabalho nas áreas onde estavam na Ucrânia?
No meu projeto, acompanho de qualquer mulher que esteja motivada, que tenha qualificações e queira fazer uma reconversão tecnológica. O sector tecnológico não liga assim tanto aos diplomas, às escolas de origem, mas foca-se no que se consegue aprender e a que velocidade o faz. Observo que as mulheres ucranianas que recebemos são muito sagazes em termos digitais, porque o país era mais desenvolvido e tinha melhores ligações de internet. Já tínhamos uma comunidade de pessoas da área tecnológica, com muitos "freelancers".
A Ucrânia é o terceiro país onde as companhias europeias mais subcontratam os seus sistemas tecnológicos. Acredito que vou conseguir apoiar estas mulheres, não apenas aquelas que já estavam no sector tecnológico e procuram um novo emprego algures na Europa, mas também aquelas que podem ser convertidas a este sector, até porque o seu país já estava muito ligado aquela indústria. Quando voltarem à Ucrânia, podem continuar a desempenhar esse trabalho a partir do local onde se encontram. O mais difícil no nosso trabalho é ajudar mulheres a esquecer o passado e os seus empregos anteriores. Elas eram professoras, contabilistas, médicas, jornalistas, arquitetas e abandonar essa identidade, a sua dignidade social e o seu estatuto é difícil. Mas espero que possamos andar rápido nisto com as mulheres ucranianas, porque este sector industrial já era grande e conhecido destas mulheres.
O que é que acontece às crianças que vêm com estas mulheres?
Essa é a grande questão. Não tenho dados, apenas relatos sobre esta questão. Isto depende do país onde chegaram, mas é verdade que existe uma geração inteira de miúdos que precisam de continuar a escola e integrar estabelecimentos de ensino onde não falam a sua língua nem têm o seu plano de estudos. E penso também naqueles que têm 17 ou 18 anos e que estavam no último ano antes de ir para a universidade. Para onde pensam ir? Tudo foi interrompido e penso muito nesses estudantes e na forma como vão seguir para a universidade.
Passaram sete anos do dia 2 de setembro de 2015 quando viu a foto de Aylan Kurdi numa praia da Turquia e isso mudou a sua vida. Sete anos depois, há ainda um domínio dos ciclos mediáticos baseados em fotos chocantes na forma como se age com urgência em crises como estas?
Sim, ainda estamos assim. Lembre-se das fotos do aeroporto de Kabul no ano passado e da forma como as pessoas reagiram. Veja a forma como as pessoas reagiram às primeiras noticias da guerra na Ucrânia. O ciclo mediático é o mesmo e as pessoas envolvem-se quando veem as fotografias.
Aproveita-se disso?
Aproveito, mesmo sabendo que daí a três ou quatro meses vai surgir uma outra história de outro qualquer lugar no mundo a que as pessoas se irão ligar. É a realidade, é a forma como estamos conectados. Somos seres emocionais e as pessoas reagem muito rapidamente às emoções. Se é construtivo? Penso que não.
A minha organização não foi construída a partir de emoções, mas com base em dados e investigação e é por isso que estamos a ajudar as mulheres. A razão pela qual ajudamos apenas mulheres prende-se com o facto de serem duas vezes mais qualificadas que os refugiados do sexo masculino e no entanto estão três vezes mais desempregadas. Apoiamos quem está em maior desvantagem, o que é paradoxal, porque têm habilitações e por isso têm mais hipóteses do que os homens de ter empregos igualmente qualificados, terem mais rendimentos para toda a família, ajudando os homens, as crianças, toda a gente. Trata-se da coisa mais ínfima que posso fazer para ter o maior impacto. Continuaremos a fazer o nosso trabalho independentemente dos ciclos mediáticos. Se quisermos ser estratégicos como organização, o meu trabalho é preparar a próxima crise que poderá levar a migrações e perceber como terei boas reações de forma a obter mais donativos para o nosso trabalho a todos os níveis e não apenas para um tipo de refugiados.
As companhias tecnológicas dominam o mundo, com imenso poder económico. Pensa que essas empresas fazem o suficiente neste domínio? O seu projeto simboliza a cidadania a pegar em algo que as grandes empresas deviam estar a fazer?
Se há algo que é certo é que, devido aos "smartphones" e à internet, ser refugiado hoje é muito diferente de o que era há 20 ou 30 anos. As pessoas que saíam da ex-Jugoslávia nos anos 90 tinham que enfrentar o mundo sem estes telemóveis. Tinham que se manter juntos e dar as mãos como família para se manterem próximos. Se queriam contactar alguém muito longe, teriam que ir a um centro, esperar a sua vez, fazer essa chamada telefónica, memorizar o número e assegurar que determinada pessoa atenderia o telefone aquela hora, o que provavelmente não aconteceria. Hoje temos pessoas que procuram o estatuto de refugiados em barcos no Mediterrâneo a enviar as suas localizações por Whatsapp aos seus amigos em Nova Iorque ou ao controlo de fronteiras para os irem buscar ao Mar.
Temos crianças e familiares a separarem-se porque distribuem telefones por todos de forma a poderem encontrar-se pelas suas contas de Facebook. Hoje é totalmente diferente ser refugiado devido à tecnologia. Já não estamos desconectados e isso cria também o desafio de estar fora do seu país sem estar tão seguro como no passado.
Ser refugiado significa que, na maioria dos casos, há razões políticas para ser um alvo, sobretudo se for bastante ativo em termos políticos. Pode continuar a ser um alvo fora do seu país, porque pode ser localizado, mas também pode fazer o seu caminho sem que ninguém saiba de si nem o procure. Por exemplo, o regime de Assad tem "hackers" à procura dos dissidentes, a determinar onde estão e como podem matá-los mesmo que estejam fora das suas fronteiras.
É possível protegê-los tecnologicamente?
Não é o meu trabalho, mas tentamos informar as mulheres e os parceiros dos nossos programas sobre os perigos da internet a esse nível e eles têm que se assegurar de que a sua privacidade está protegida. Muitas vezes temos mulheres que não querem estar no Linkedin, mesmo que isso ajude na procura de trabalho, porque consideram-se alvo de determinado país ou governo e estar na internet significa receber ameaças.
Ser refugiado hoje significa estar ligado a todo o tempo com o seu país e manter-se ainda lá mentalmente. É realmente difícil desconectar do seu país e ainda há gente má a perseguirem estas pessoas pela internet. É um outro mundo novo e realmente temos que perceber isto se queremos servir melhor essas populações. É aqui que temos que fazer mesmo um impulso na hospitalidade e integração de refugiados, porque, na verdade, temos que proteger a democracia. Para mim um dos critérios de democracia é a forma como um regime trata as suas minorias. Há a famosa imagem de que primeiro vieram buscar os comunistas, depois os judeus e depois vieram mesmo buscar-me. Isto começa a criar uma divisão entre as pessoas que têm o direito de estar aqui e as que não têm, alegando que os refugiados são diferentes. Criar cidadãos de segunda classe no seu próprio país é uma rampa deslizante para a democracia. Temos que estar muito atentos a isso.
Esteve presente nas Conferências do Estoril perante um publico jovem que ainda está a estudar. O que é que eles podem fazer para além de fazer donativos e receber pessoas em casa?
Fico sempre entusiasmada em relação a este tipo de audiência. São pessoas jovens que estão expostas às décadas que estão a chegar como na questão das alterações climáticas e outras matérias. Elas vão para empresas e crescer nessas companhias até serem gestores e até criarem as suas próprias empresas. Por isso, têm a responsabilidade de manter estas questões no seu pensamento, de abrir sempre os olhos e mudar o modo como as empresas trabalham. Estas companhias vão precisar de sangue novo, cabeças frescas para mudar a forma como operam em diferentes paradigmas.
No meu caso, quero que os jovens entendam que contratar refugiados faz sentido do ponto de vista empresarial, porque falam várias línguas e conhecem vários mercados. Se quiser ser uma empresa global, vai querer construir uma companhia para os mercados globais. Os refugiados são pessoas motivadas, resilientes e especializadas e isso faz todo o sentido ao nível dos negócios. O tópico da diversidade dentro das empresas tem que continuar a ser abordado se quisermos progredir como sociedade. Ajudar refugiados não é um mero trabalho social e humanitário, mas implica também avançar na agenda da diversidade dentro das empresas. Não é preciso esperar para se envolver nesta questão. Ao voluntariar-se para uma ONG que ajude refugiados a encontrar trabalho, esse jovem será um melhor gestor daqui a cinco anos na sua empresa porque conseguiu lidar com a diversidade.
Algumas destas mulheres refugiadas experimentam um choque em relação às suas tradições e culturas quando se encontram num país estrangeiro. Como aborda as diferentes culturas de referência para as mulheres refugiadas?
O nosso trabalho está fundamentalmente focado num nível profissional e por isso não lidamos diretamente com essa questão. Mas pelo apoio holístico que fornecemos a estas mulheres, observamos que a forma como serão empoderadas nos seus empregos, com discussões de salários, terá um efeito na sua vida familiar e na forma como se autoavaliam na esfera privada.
Hoje em dia isso é benéfico para todos, porque muitos homens dessas famílias expressaram gratidão pela forma como o nosso programa empoderou as suas mulheres de forma a saírem da sua depressão, do seu estado de negativismo e do sentimento de perda. Nalguns casos, isto conduziu a alguns divórcios e essa é a consequência negativa. A mulher ganha poder e finalmente sai de uma situação onde não estava feliz, mas não conseguia ver isso mesmo. Não é algo ligado a religião ou nacionalidade, mas apenas um processo que se desenrola caso a caso. Nós ajudamo-las a nível profissional. Elas tornam-se social e economicamente independentes e conseguem mesmo a sua própria casa. Isso é bom.
Mas é difícil lidar com a origem cultural destas mulheres?
A forma de ver esta situação é difícil para qualquer ser humano, uma vez que elas têm que transformar para responder a um novo contexto onde têm que mudar a linguagem. Têm que compreender que o contexto onde fizeram toda a sua vida mudou completamente e, portanto, têm que se adaptar e transformar-se noutra pessoa, entendendo que a identidade que construiu já não lhe serve. É sempre difícil construir uma nova identidade e por isso é necessária uma transição para todos se poderem integrar.
Tive conversas com mulheres de várias nacionalidades, religiões ou idiomas, que são muito diferentes a esse nível, mas muito próximas dos meus valores. Para quem vem de uma sociedade mais tradicional para uma Europa menos focada na família e mais centrada no individualismo, isto é um choque. Algumas irão adorar, outras não irão gostar. Mas quem gosta liga-se muito e torna-se mais feminista do que eu, são muito mais empoderadas do que eu a muitos níveis. Gostaria que as pessoas entendessem que quando há uma verdadeira hospitalidade e estas pessoas são bem recebidas, elas são as mais democratas, as mais entusiastas da democracia, seja de que nacionalidade forem. Elas respondem ao que lhes é dado e, portanto, são mais franceses do que eu, muitas vezes mais feministas que eu. Por isso não devemos ter medo destes "estranhos" seja de que religião ou cultura sejam. Claro que isto não é fácil, é uma travessia. E nem todas quererão ser empoderadas e eu aceito isso. Nós não as forçamos a isso nos nossos programas, porque nos baseamos em níveis profissionais.