15 abr, 2017 • Francisco Sarsfield Cabral
No domingo de Páscoa realiza-se na Turquia um referendo sobre os poderes do Presidente da República. Desta consulta poderá resultar não só um enorme reforço dos poderes presidenciais (além do mais, o Presidente da República passará a chefiar o governo) como um importante passo no sentido de islamizar um país que nasceu agressivamente laico.
A república turca tem menos de um século – foi oficialmente proclamada em 1923. O seu primeiro presidente e líder do movimento nacionalista, contra o poder otomano, foi um herói militar que combateu os britânicos na I Guerra Mundial, Kemal Ataturk. O grande objectivo de Ataturk, além da independência, era fazer da Turquia um Estado laico, moderno e democrático. Ou seja, um país parecido com as potências ocidentais.
Foi então criminalizado o uso do véu islâmico, as mulheres ganharam direitos que o regime muçulmano do império otomano não lhes concedia, etc. Os militares, que desempenharam um papel activo (e nem sempre democrático) na vida política turca, assumiram-se como os guardiões dos ideais de Ataturk, combatendo qualquer interferência islâmica na vida pública e privada do país. Assim tentaram justificar várias intervenções – golpes de Estado – na política turca.
Aproximação a Ocidente
Entretanto, em 1952 a Turquia aderiu à NATO. E as suas forças armadas tornaram-se as segundas mais importantes da Aliança, logo depois dos militares americanos. A Turquia foi um elemento crucial na guerra fria.
No plano económico a aproximação ao Ocidente traduziu-se num pedido de adesão à CEE logo em 1959, que não teve seguimento. Mas quatro anos depois conseguiu um acordo de associação à CEE, pouco depois de a Grécia, inimigo histórico da Turquia, ter obtido um acordo desse tipo.
Mas enquanto a Grécia entrou para a CEE em 1961, a Turquia voltou a pedir a adesão a União Europeia (sucessora da CEE) em 1987, tendo as negociações começado formalmente em 2015. Não foram negociações de boa-fé, porque muitos e importantes dirigentes políticos europeus não queriam que a Turquia entrasse na UE. Mesmo assim, e como condição para o prosseguimento das negociações, a Turquia aceitou várias exigências da UE, nomeadamente em matéria de direitos humanos. Por exemplo, aboliu a pena de morte, que Erdogan quer agora reintroduzir.
Hoje ninguém acredita que a Turquia entre no futuro previsível na UE. A frustração que muitos turcos “europeístas” sentem terá facilitado a viragem de Erdogan para o mundo muçulmano.
A evolução de Erdogan
Erdogan parecia um islâmico moderado e democrático quando, tendo o seu partido ganho as eleições, em 2003, se tornou primeiro-ministro. Ao longo de 11 anos à frente do governo de Ankara, capital da Turquia, Erdogan foi-se mostrando gradualmente mais autoritário e mais favorável à religião muçulmana na vida pública do país. Para isso combateu a influência política dos militares, que no passado “laico” quase não obedeciam ao governo, tendo até um orçamento específico, votado por eles próprios.
Há dois anos parecia encaminhado um processo de paz com os curdos da Turquia. Mas o processo parou, provavelmente para Ankara agradar aos nacionalistas turcos. Assim, sendo Erdogan um adversário do ditador sírio Bashar al-Assad, as tropas turcas empenharam-se sobretudo em atacar os curdos do Norte do Iraque, os “peshmerga”, grandes combatentes contra o “Estado Islâmico” e as forças de Assad. O terrorismo curdo reapareceu na Turquia.
A caminho do poder total
Eleito presidente da República em 2014, Erdogan logo começou a manobrar para tornar o cargo de meramente representativo e protocolar em chefe do executivo. Se ganhar o referendo, Erdogan será todo-poderoso.
A via repressiva e autoritária em que entrou Erdogan foi reforçada em Julho passado com uma tentativa abortada de golpe de Estado. A partir daí, multiplicaram-se as prisões, os saneamentos, as purgas (incluindo de militares de alta patente), os encerramentos de meios de comunicação social, etc. A democracia recua e recuará ainda mais se Erdogan ganhar o referendo.
Erdogan e os seus apoiantes atribuem o falhado golpe de Estado de Julho a um grupo religioso e social, dirigido desde 1999 a partir dos Estados Unidos por um antigo aliado do presidente, o erudito islâmico Fethullah Gullen. O presidente e governo turcos têm reclamado a extradição de Gullen para a Turquia, mas até agora, pelo menos, Trump não lhes fez a vontade.
Este grupo parece, de facto, ter grande influência em vários sectores da vida turca. Mas, ao certo, não se conhece o seu papel, se o teve, na tentativa de golpe. Tudo indica que esse golpe falhado foi um pretexto para uma “caça às bruxas” em larga escala lançada por Erdogan, eliminando o maior número possível de inimigos.
Se o presidente ganhar o seu referendo, a democracia dará um passo atrás na Turquia. E depois, como será a posição deste país na NATO?