19 mar, 2021
Depois de ter entrado em vigor o acordo de saída do Reino Unido da UE as complicações não acabaram. Não me refiro às expectativas que os apoiantes do Brexit criaram na sociedade britânica e que, de tão absurdas muitas delas, jamais poderiam ter concretização na realidade. Nem às inevitáveis maiores demoras nas alfândegas, travando o comércio entre o Reino Unido e os antigos parceiros da UE. Agora é o próprio acordo de saída que está em causa, quando o primeiro-ministro britânico Boris Johnson toma medidas unilaterais contrárias a esse acordo.
Não é a primeira vez que Boris Johnson renega obrigações que se havia comprometido a cumprir. Meses antes do fim do ano passado, data na qual a saída da Grã-Bretanha se concretizaria (como concretizou), o primeiro-ministro britânico voltou atrás, violando inclusivamente o direito internacional e prejudicando a imagem do seu país quanto ao cumprimento de compromissos assumidos. Agora repetiu o gesto, o que a UE não poderia deixar passar sem uma reação dura. No julgo que essa reação reflita qualquer intenção da UE ou dos seus Estados membros de castigar os britânicos por terem saído da Europa comunitária, como às vezes se diz. Trata-se, apenas, de fazer valer o que foi antes acordado.
A Comissão Europeia abriu um processo de infração contra o Reino Unido por causa da decisão unilateral de Londres de prolongar o “período de tolerância”, adiando a aplicação dos controles previstos no protocolo sobre a Irlanda do Norte. “É a segunda vez que o Governo britânico viola o direito internacional”, lamentou a Comissão. Perante mais esta viragem britânica, o Parlamento Europeu adiou a ratificação do acordo de saída. Caso o Reino Unido mantenha a sua posição atual, o caso será encaminhado para o Tribunal de Justiça da UE. Ora o Brexit foi feito alegadamente para os britânicos ficarem livres de imposições da UE...
Como desde o início se percebeu, os conflitos e as infrações centram-se no imperativo de manter aberta a fronteira entre a República da Irlanda e o Ulster (Irlanda do Norte), embora também tenham surgido outros problemas (por exemplo, em relação às pescas). O Ulster faz parte do Reino Unido. Para não fechar aquele fronteira, o que poria em causa o chamado acordo de sexta-feira santa, que em 1998 pacificou as relações entre os protestantes e os católicos do Ulster, foi acordado que o Ulster, ao contrário do resto do Reino Unido, se manteria no mercado único europeu. O que implica uma fronteira virtual no mar, entre o Reino Unido e o Ulster. Essa fronteira teria de ser vigiada de modo a evitar que mercadorias vindas da Grã-Bretanha entrassem ilegalmente no mercado único europeu.
Foi previsto um “período de tolerância” antes de instalar, a sério, as medidas de vigilância. Esse período termina no final deste mês, mas Londres pretende prolongá-lo de forma unilateral. A UE mantem-se aberta ao diálogo e à negociação deste assunto.
O problema para o Governo de Londres está em que os protestantes unionistas do Ulster detestam o acordo sobre a fronteira no interior da Irlanda, temendo que, a prazo, o Ulster acabe por integrar a República da Irlanda, saindo do Reino Unido. Houve um tempo, quando Teresa May era primeira-ministra, em que os deputados daqueles unionistas na Câmara dos Comuns eram indispensáveis para dar uma maioria ao Governo conservador britânico. Agora, porém, Boris Johnson dispõe de uma larga maioria de deputados conservadores. A influência política do Ulster no Governo de Johnson é atualmente muito limitada.
B. Johnson apresentou esta semana as prioridades da política externa britânica pós-Brexit. Não foi simpático para com a UE, o que se compreende (estava a sair da UE...) e destacou a relação especial com o Estados Unidos. Certamente B. Johnson não ignora que Nancy Pelosi, líder da maioria democrática na Câmara dos Representantes, e o próprio Presidente Joe Biden, com ascendência irlandesa, já tornaram claro que, se for posta em causa a abertura da fronteira irlandesa, não haverá qualquer acordo comercial entre os EUA e o Reino Unido.
Este conteúdo é feito no âmbito da parceria Renascença/Euranet Plus – Rede Europeia de Rádios. Veja todos os conteúdos Renascença/Euranet Plus