24 jun, 2016
Esta não é mais uma sexta-feira negra. É a sexta-feira do buraco negro. Cameron é a primeira vítima da sua própria imprudência, mas o impacto na política interna inglesa é o que menos nos afecta.
Até a subida do iene que trava as exportações japonesas e acentua a recessão nos prejudica mais. A desvalorização dos bancos ingleses e espanhóis (Santander incluído), deteriorando a confiança num sector à beira do colapso, também. Para Portugal, recorde-se: pior do que a desgraça própria é sempre a desgraça alheia. Com o mundo a mergulhar na recessão mesmo 1% de crescimento se torna miragem.
Hoje, não precisamos de esperar que a Bolsa de Lisboa abrisse a cair 10% para sentir um frio na espinha. Horas antes já a libra tinha sofrido a maior queda da história. Isso chegava. Fartos de previsões catastrofistas, quem se deteve nos números das estimativas de perdas que em cadeia FMI, OCDE, Comissão Europeia, HSBC, JPMorgan, Goldman Sachs foram elaborando alertando para os perigos iminentes?
Mas esta não é apenas uma questão económica. Mesmo para Portugal é sobretudo muito mais do que isso. Esse foi, aliás, o segundo pior erro de Cameron: pedir ao povo para “votar a pensar no respectivo emprego”, dando “prioridade à economia”. Para os jovens londrinos, isso significava “ficar”, mas para o operariado inglês, que sofreu a deslocalização e a concorrência “desleal” da baixa de salários resultantes da livre circulação dos europeus de Leste, significava provavelmente “sair”. O futuro dos filhos não passa apenas pelas carteiras dos pais.
É do futuro que falamos agora. Incerto. E a incerteza é cara. Trava o investimento, trava o consumo, gera desconfiança, paralisa o investimento, impede a mais leve retoma. É mau, mas não é sequer o pior: alguém sabe contabilizar o preço da paz? O que significará a alegria expressa por Konstantin Kosachev (o político responsável em Moscovo pelo comité de negócios estrangeiros), citado na imprensa internacional como uma das primeiras vozes que se fizeram ouvir em Moscovo, quando afirma que o Brexit “não significa o afastamento da Grã- Bretanha da Europa, mas o afastamento da Europa dos Estados Unidos, abrindo caminho à Eurásia”? Sabemos que Putin existe e constitui uma nova velha ameaça.
A pequena ambição de Cameron pela conservação do seu poder, ameaçado pela crescente influência do eurocepticismo do UKIP, está muito longe de apresentar apenas uma factura pesada à Europa e ao mundo. Prova que é possível que os destinos de mais de 400 milhões de pessoas e da própria História podem estar perigosamente dependentes da imprudência de um único homem. Não é preciso estarmos perante um louco ou um monstro. Serve um político mediano banalmente ambicioso surpreendido por uma imprevista crise de refugiados que o fez perder o controlo das expectativas.
Não foi preciso esperar pela eleição do senhor Trump para provarmos na pele o veneno populista. É caso para dizer: habituemo-nos. A sucessão que se torna agora possível e provável é em si mesma um filme de terror. Num ponto tem razão o senhor Farage: uma vez libertado o génio do eurocepticismo, ninguém mais o conseguirá fazê-lo aprisionar de novo na garrafa. Percebe-se a felicidade com que o líder do UKIP celebrou a vitória que pretende festejar com um feriado nacional.
Merkel fez bem em não tentar dourar a pílula: “Não há volta a dar. A Europa sofreu um rude golpe”. Duríssimo. Saíra caro em prosperidade, mas em muitas outras dimensões pode sair caríssimo. Os 27 não vão apenas perder o contrapeso ao excesso de influência do eixo-Paris Bona, a Europa fica amputada da única nação com efectivo poder militar e capacidade de projecção de forças, perde-se a visão atlantista e a ligação preferencial aos Estados Unidos. Mesmo sem Trump a atrapalhar, é difícil prever o que se passará com a Nato e em que medida a Nova Europa, receando Moscovo, procurará aninhar-se sob a asa protectora da liderança americana.
Nos 27 perde-se um travão realista aos excessos federalistas e centralizadores. Escancarada a porta de saída, ninguém sabe onde irá parar o efeito-dominó. O presidente da Comissão terá de rapidamente engolir o “out is out”, mas qualquer passo em falso será agora sempre visto como um apetecível precedente para as mais variadas ameaças de renegociação de novos estatutos de excepção.
Na Finlândia, os Verdadeiros Finlandeses são já a segunda força eleitoral no país (um quinto dos votos nas últimas legislativas) e na Áustria passa-se o mesmo com o Partido da Liberdade. Na Hungria, a Aliança Cívica está no poder com uns confortáveis 44,5%, praticamente os mesmos que a Direcção Social Democrata da Eslováquia. Na Itália, o partido de Beppe Grilo teve 25% e acabou de ganhar a Câmara de Roma. Na Polónia, a Lei e Justiça vale um terço dos votos. Podíamos continuar a listar o peso dos populistas eurocépticos: são 18 os partidos que à esquerda e à direita hostilizam a permanência dos respectivos países na União.
A investigação de Pedro Magalhães sobre a evolução do Eurobarómetro mostra como a confiança no projecto europeu é altamente influenciada pelos factores conjunturais, mostrando, por exemplo, em Portugal e Espanha que a desconfiança e desilusão estão directamente relacionadas com a prosperidade ou escassez económica. O investigador gosta de resumir a conclusão numa frase simples. Os inquiridos não aferem a sua adesão ao projecto, respondem apenas à pergunta: “O que é que a Europa fez por mim nos últimos meses?”. Este referendo (a mais fidedigna das sondagens) surgiu na altura errada. Os britânicos responderam “pouco”. Fosse no Eurobarómetro e não era grave. Nas urnas foi.
E Portugal? Sejamos optimistas: comecemos por nos convencer que pode sempre ser pior. Sobretudo se os planos B (do BCE, bancos centrais, grandes investidores, etc.), que só hoje saíram das gavetas, acabarem por se mostrar a prazo ineficazes. Não nos iludamos com a aparente sucesso do primeiro dia em que se foi capaz de travar as quedas nas bolsas, a subida dos juros e a escalada do euro. Confiemos para já.
Certo, certo é que temos o quarto lugar nos estudos conhecidos entre os países que podem ser mais afectados pelo “Brexit”, seguindo o binómio número de emigrantes no Reino Unido e intensidade das relações económicas com a Grã-Bretanha. Pior estão a Irlanda, Chipre e Malta. Temos mais de 800 mil portugueses em Inglaterra e mais de cem mil chegaram nos últimos anos. O Reino Unido é o maior comprador dos nossos serviços (turismo incluído) e o quarto cliente das nossas exportações de bens (7% do total). Também é o nosso segundo maior fornecedor de serviços e o quinto de bens. Por último, é o terceiro país de origem das remessas de emigrantes. Alguém saberá como sair do buraco?