01 fev, 2017
Que me desculpem os crédulos, signatários da petição pró-eutanásia, mas não volto a discutir a lei da eutanásia em estado de virgindade intelectual. Aquele palavreado em torno de uma lei feita com “os maiores cuidados”, ouvidos “todos os especialistas “ e que exclui designadamente a sua aplicação “em doentes do foro psiquiátrico ou crianças” choca frontalmente com os factos à vista de todos depois de 15 anos de vigência da lei belga e de outras.
Falo da lei belga apenas porque acompanhei em Bruxelas o seu debate e nele participei. Mas hoje há mais exemplos, como recordava segunda-feira, no “Público”, um texto de José Mário Martins, ao lembrar como já em 2013 o ministro da Economia japonês afirmava, com total falta de pudor, que os idosos doentes deviam “morrer rapidamente” para ajudar a sustentabilidade do sistema de pensões.
Apesar disto e do galope constante do número de eutanasiados na Bélgica e na Holanda (incluindo crianças e vários tipos de dementes) com taxas de crescimento de 700% numa década, a verdade é a de que, cada vez que o debate sobre a legalização da eutanásia regressa à mesa das “fracturâncias”, se repetem as juras de que só se aplicará a casos tão raros quanto extremos, ao estilo Ramon Sampedro (que o filme “Mar Adentro” celebrizou).
Como se a eutanásia apenas ocorresse em resposta a pedidos reiterados e devidamente controlados por equipas de pelo menos três especialistas, de forma a garantir que o sofrimento “insuportável” do doente em fase terminal não resulta da solidão, da depressão e da condição de abandono e da sensação de peso para os outros que a própria sociedade lhes incute. Em vez de apoiar quem sofre com a rede de cuidados paliativos a que deveria ter direito, oferecem-lhe uma alternativa indolor e barata.
A verdade é que a evolução dos números da eutanásia nos países em que esta se legalizou e a pluralidade dos casos envolvidos estão agora à vista de todos. Prova-se que não só não foram cumpridas as reservas iniciais como intencionalmente se foi alargando o âmbito da lei a mais e mais casos.
O perigo da chamada “rampa deslizante” não é um fantasma que paira sobre as cabeças mais conservadoras, é um dado provado pelas estatísticas para quem quer que as consulte. Na Bélgica no ano a seguir à votação da lei foram eutanasiadas 235 pessoas, muitas das quais diziam os preponentes da lei que a descriminalizou “esperavam há anos esse acto de misericórdia”. Em 2013 já foram 1.807 os eutanasiados . Em 2015 entre eutanasiados e suicidas assistidos na Holanda o número foi de 4.829, ou seja 3,4% do total de mortes registadas nesse ano. É muita gente para se incluírem no pequeno número de tetraplégicos em estado terminal desesperados.
Na Bélgica houve muitos casos de dementes, que teriam antes mostrado reiteradamente essa vontade. Mas como provar que a mantinham na hora da morte, dada a sua doença? Basta a intervenção da família para nos sossegar? Houve também crianças e até adultos que invocaram não resistir à perda de parentes próximos ou do amor da sua vida.
Nestes casos a eutanásia é considerada acto médico, contrariando o velho juramento de Hipócrates vertido na maioria dos códigos deontológicos dos médicos. Por cá, os cinco ex-bastonários da Ordem dos Médicos e o mais recente eleito já se pronunciaram todos contra a participação de médicos neste tipo de práticas, advertindo para o facto de elas constituírem uma violação grave do respectivo estatuto. Ainda bem.
Associa-se “dependência” e falta de “autonomia” a questões de dignidade. Como se o simples facto de necessitar da ajuda de outros ou da própria sociedade nos reduzisse a uma condição menos digna do que a dos nossos pares. Aliás, a escassa dezena de médicos que avalizam a eutanásia de milhares na Bélgica mostra como a opção ideológica de uns poucos pesa na decisão de muitos.
Na discussão, por mais serena que se pretenda, há sempre um intelectual, um escritor, um artista, um professor, um anarquista ou activista conhecido que dá a cara pelo seu caso, reivindicando com afinco um direito a decidir da sua própria vida nesse transe final, sem dor e com a mobilização da equipa médica da sua confiança. Aqui faz-se geralmente o pleno da compaixão. Esquecendo que uma lei como esta muda radicalmente a sociedade porque envia o sinal errado sobre o que somos e o que queremos ser. Por mim não tenho dúvidas: não quero uma sociedade assim, em que velhos, deficientes e dependentes se possam sequer imaginar-se um “estorvo” a eliminar.
Ser contra a eutanásia não é defender o prolongamento inútil de uma vida que se esvai. Não é ser masoquista nem impor aos outros uma noção de sacrifício redentor, que numa sociedade laica não tem sentido. Não significa ser a favor de continuar tratamentos inúteis até ao limite do insuportável, nem desejar ficar ligado a uma máquina, que se transforma no único suporte de uma vida sem esperança de regresso e que já partiu. Tudo isso pode ser evitado pela boa prática médica que deve evitar o “encarniçamento terapêutico”. Se há dúvidas recorra-se ao testamento vital que já está ao dispor de todos e permite deixar expresso sem dúvidas o tipo de tratamento pretendido.
Ser contra a eutanásia é apenas reconhecer que, sendo inevitável, a morte é imprevisível. Raramente se fará anunciar com dia e hora marcados, excepto se existir um acto directo que destinada a provocá-la. Este pode resultar de um suicídio, assistido ou não, ou na dita eutanásia (acção que através de injecção ou outro medicamento letal administrado por alguém causa a morte a quem o consente ou pede reiteradamente).
A sacralidade da vida não tem aqui conotação religiosa. Corresponde ao interdito “não matarás“, comum à maioria das culturas e inscrito na declaração universal dos direitos do homem. Uma vez ultrapassado este interdito, a sociedade entra na rampa do descarte dos que já não lhe são úteis.
Convém que o debate não se volte a fazer em torno de “fantasias” legislativas e cada campo assuma o projecto de sociedade e o sinal que que pretende transmitir aos mais jovens com esse “salto no escuro legislativo”, que a experiência alheia já nos permitiria razoavelmente iluminar, precavendo-nos contra a dimensão da queda.
Marcelo pede um debate sereno e prolongado. Faz bem para que ao direito à morte dita “digna” não venha a suceder que, pelos critérios assumidos pelo ministro japonês, não se venha a instituir um perverso “dever” de lhe dar conteúdo, evitando aumentar o défice, delapidar a herança familiar, ou simplesmente perturbar a vida de familiares e amigos.
A criação de uma espécie de “direito à morte” (como se a morte não fosse uma inevitabilidade e tivesse de ser reivindicada enquanto progresso legislativo), tem do lado de lá do espelho jurídico o sinal enviado a cada potencial detentor desse novo direito o concomitante “dever” de o “accionar” pelo menos em certas circunstâncias.
Não podemos permitir que à velhice, à doença, à dependência, à dor e ao medo se acrescente gente apontando a dignidade pretensamente perdida. Lembrando-lhes que porque “já não andam cá a fazer”, talvez seja preferível partirem rápida e serenamente, anestesiados de qualquer dor, mas de preferência antes das férias de Verão.