01 ago, 2017
A lei das barrigas de aluguer entrou hoje em vigor. Na habitual "Opinião Pública" da SIC, sobre o tema, um dos participantes afirmou: “Ninguém pergunta às cadelas quando lhes vão tirar os filhos se elas querem e só não o fazem às leoas com medo de ficarem por lá alvo de alguma dentadita…” (cito de memória).
Assim terminou a sua defesa da justeza da lei. "Vox populi" a acabar o debate sobre os eventuais direitos da mãe gestante. A comparação ignorante e infeliz tem o mérito de chamar a atenção para uma realidade: a mãe obrigada a ceder “por contrato” o filho gerado, na hora do parto, corta o cordão umbilical com o filho não apenas física, mas contratualmente.
Com uma agravante: fá-lo, supostamente, por um acto de amor para com a mãe contratante, sendo-lhe particularmente próxima. E com quem, muito provavelmente, continuará a conviver de perto.
A mesma sociedade que garante que, numa gestação desejada e “normal”, aqueles nove meses serão decisivos para o futuro e bem-estar do bebé - devendo ser rodeados de todos os cuidados (não vá o pobre traumatizar-se in utero e já não conseguir tirar o doutoramento), devendo a mãe seguir uma alimentação saudável, passando pela sessão de festas à barriguinha impostas ao parceiro da gestante, da música a ouvir a três, dos sonhos a cultivar pela mãe, do stress a evitar e da paz que rodeia todo aquele tempo de preparação para a vida futura e que não raro passam por repintar a casa com cores suaves e delicodoces -, faz com que, nesta lei, todas estas teorias se apaguem por milagre. Já não interessa nada disso, nem isso condicionará a vida futura do bebé, como se o ventre de aluguer se transformasse agora numa mera incubadora.
Imaginemos o caso da mãe gestante de “aluguer” da filha (sem útero) e que, por isso, recebe o óvulo fecundado da filha pelo esperma do genro. E que, na hora do parto, entrega à filha o neto depois dos nove meses de gravidez vivida com a mesma intensidade que colocou na gestação da própria filha ou de um qualquer dos seus irmãos, mais velhos ou mais novos. Não me digam que isso não trará à mãe gestante a maior das confusões. Mas talvez a irmã mãe solteira possa, solidariamente, oferecer-se para ter como única experiência de maternidade a gestação do sobrinho, filho do cunhado e da irmã. Não me convencem que isto se resolve a seguir apenas com o apoio psicológico adequado à mãe incubadora.
Diz o dr. juiz Eurico Reis (que tanto prezo em múltiplas matérias) que esta minha posição contra a lei das barrigas de aluguer, expressa também por outros participantes, sofre de uma enorme “hipocrisia” e “crueldade” e visa impedir às mulheres sem útero que recebam de Deus “a bênção de um filho”. Curiosa, sim, é a hipocrisia de quem assumindo que não crê, pretende manipular com os argumentos de quem se confessa crente as crenças que não professa e, pelos vistos, nem conhece.
Claro que para um católico um filho é sempre uma bênção, mas nem todos os católicos terão os filhos que desejam nem esse facto é visto como um direito que lhes assiste. Nem como facto de por isso serem menos amados pelo Deus em que acreditam. Por isso, não se sentirão menos abençoados. Esse tipo de argumento ficou-se pelo Antigo Testamento e Cristo veio à terra não para mudar a lei, mas para lhe revelar o verdadeiro sentido.
Ter muitos filhos não é um atestado de bom comportamento religioso nem de uma preferência de Deus. E não ter filhos não é sinal de abandono divino ou de menos amor por parte do Criador. Crueldade é apresentar as coisas dessa forma, fazendo crer que a amputação da experiência da maternidade é sinal de privação de uma experiência de realização a que todos, sem excepção, têm uma espécie de direito de acesso incondicional. Os filhos também são fruto da nossa liberdade e o facto de não os ter pode resultar de uma miríade de circunstâncias.
Diz também Eurico Reis que, porque a adopção só é muitas vezes possível quando as crianças já não são bebés, o debate não pode fazer-se em paralelo. E porque crescem os bebés institucionalizados? Não será porque é urgente rever a lei da adopção? Ou o direito a ter um filho passa por ter um filho recém-nascido “alto loiro e de olhos azuis”, ou encomendado “à Ronaldo”, tornando o ADN uma espécie de deus da felicidade? Não podem os afectos aqui sobrepor-se à genética? Ou até à idade? Ou, simplesmente, se recusa hipocritamente essa saída?
Por contraponto, traz o juiz à colação a questão da violência doméstica em muitas famílias ditas “normais”. Como se aquelas que beneficiarem desta técnica tivessem atestado garantido de bom comportamento conjugal e educacional. Talvez aqui é que seja melhor não se confundirem os debates que, esses sim, não têm nada a ver com a questão em causa, uma vez que a praga da violência é transversal a toda a sociedade e não poupa, sequer, os que tem filhos muito desejados ou adoptados (onde o estudo do perfil dos adoptantes deveria impedir que a violência familiar viesse a acontecer!).
No final da legislatura, o Bloco exibirá ufano as grandes conquistas “civilizacionais“ inscritas no seu programa, enquanto o PS moderado se ficará por conquistar um atestado de bom comportamento pós-modernista, imposto pelo “parceiro” informal, indo para além da troika na agenda liberal, para raiva da direita desapossada do poder. Se assim for, será pouco na matéria reformista e muito no retrocesso civilizacional que as leis impostas - não discutidas, e apresentadas como “indiscutíveis” - vão impondo servindo-se da suave mordaça do politicamente correcto.
E é pena porque a sensibilidade social que sempre caracterizou o Partido Socialista tinha mais para oferecer. Muito mais.