12 nov, 2018
Tenho medo. Tenho muito medo de uma justiça que se comporta assim. Que não hesita em montar um circo para ir “caçar” e para exibir a “presa” (as palavras são estas e foram proferidas pelo advogado de defesa). Uma justiça que, não tendo nem ocasião nem celeridade nem coragem para “deter em flagrante delito” quando isso é permitido, tortura a lei até que a letra diga que o alegado réu “é perigo para a sociedade”, está prontinho a” fugir” e, zás!, vai seis meses depois à sua casa, num domingo à noite, à hora de jantar, para o levar tão humilhado quanto possível para uns vagos calabouços, de preferência fora de Lisboa para a viagem ser longa e durar mais tempo nos telejornais.
Os media vão atrás. Que remédio, é notícia. Não há sequer a menor dúvida de que o é. Faz parte do circo que a justiça monta? É verdade. Mas também ao fazê-lo está a mostrar como a injustiça prevalece num Estado que tem a pretensão de dar lições aos outros nesta e noutras matérias.
As pessoas sentadas nos sofás vociferam de um lado e regozijam-se do outro. Poucos, muito poucos, talvez, se indignam e reconheçam que “não havia necessidade”. Não podendo ou querendo fazer justiça em tempo e a tempo, o nosso Ministério Público repete estes espetáculos degradantes. Ora com o major que veio especialmente da Republica do Congo para depor num processo e sai algemado (humilhação suprema para um oficial), ora com o animal feroz que já foi primeiro-ministro, quer agora com uma figura do futebol que já não tem os estádios cheios para o defender. A GNR de um local qualquer entra pelo seu apartamento em Lisboa, com cães, como se se tratasse de um terrorista internacional, para, tarde e a más horas, levar em carrinha celular o homem que há seis meses anda a pedir para ser ouvido e que já teve tempo de fugir para um lado qualquer caso o quisesse.
Domingo à noite. Para que se possa criar um caso lá em casa. Esquecendo que o visado é um homem como nós, com mulher e filhos, família e amigos, e que devia estar ao abrigo de tudo isto se vivesse num verdadeiro Estado de Direito e não num estado de diretos.
Não percebo nada de futebol. Não sou do Sporting. Quando Bruno de Carvalho tinha poder (e em Portugal os homens do desporto costumam ter poder, ou costumavam…), não tinha a menor simpatia pela figura. O presidente do clube “rival” parecia-me um megalómano narcisista. E daí? Não temos de gostar de todas as figuras nem de todos os figurões que nos servem constantemente, envoltos nas capas de super-heróis que normalmente não são ou embrulhados nas capas dos jornais desportivos quando caem em desgraça na figura de vilões com uma pitadinha de malvadez adicional que talvez se dispensasse.
Quem quer com isto mostrar que a justiça funciona está profundamente enganado. Só mostra que, perante a sua total inoperacionalidade, os grandes que ainda gozem de uma réstia de poder ou influência saem inevitavelmente com pena suspensa, senão inocentados, quando não se exibem em total impunidade mesmo que tenham esfumado milhares de milhões depois de fazerem perder aos pobres os seus últimos tostões. Mas esta justiça que não consegue provar, não consegue decidir em tempo, não consegue assumir corajosamente até a possibilidade de errar, vinga-se assim: num "show-off" que lincha na praça pública quem sai com pena suspensa do tribunal. E cria esta sensação horrível de uma impunidade máxima de que ninguém parece estar a salvo, mesmo que vá dando indícios repetidos de crime. Mesmo um “alegado malfeitor”, por mais descarado que o seja, não deixa de ser homem e nessa condição até os monstros merecem respeito. Gozam de direitos.
Esta semana, para preparar um debate, vi, de seguida, dois filmes sobre o terrível massacre de Utoya, na Noruega. Em 2011, um jovem neonazi norueguês mata 77 concidadãos, 69 dos quais jovens que participavam num acampamento para simpatizantes e militantes da juventude trabalhista. O assassino em série quer matar o futuro e a ideia de uma sociedade multicultural onde os direitos são de todos e para todos. Vale a pena ver. De preferência em sequência: o “Utøya: 22 de julho”, que agora chegou aos cinemas, do norueguês Eryc Poppe, e o mais velho “22 July”, do britânico Paul Greengrass. No primeiro vê-se unicamente a perspetiva das vítimas, mas no segundo pode ver-se a justiça e a polícia norueguesa a funcionar. Ali, até os monstros gozam dos direitos que os próprios gostariam de matar no coração dos seus inimigos.
A polícia e justiça da Noruega dão-nos uma lição exemplar. Não vemos “agentes da autoridade” deslumbrados pelo seu segundo de fama na TV a oferecer os seus préstimos baixando-lhes a cabeça para que os alegados “bandidos” não se magoem à entrada das carrinhas que os vão levar a um calabouço qualquer. É importante dizer-lhes que este tipo de gestos só humilha ainda mais e os meliantes que continuam a ver o tamanho das portas e quando se arriscam a bater com a cabeça baixam-na naturalmente sem precisarem deste tipo de proteção policial.
Tenho medo, tenho muito medo do Estado que deixa de ser de Direito porque quer estar em direto nas TVs. Apetece-me pedir desculpa a Bruno de Carvalho, que nunca vi, de quem não tenho nenhum motivo para gostar, que é de um clube rival, e sobretudo aos filhos dele, por também eu fazer parte do circo que, num momento ou noutro, o trata inutilmente assim.