27 set, 2019
Não há informação pura. Não há notícias sem fontes e a “fonte jornalística”, aprende-se no primeiro dia de faculdade ou de emprego numa redação, tem sempre um qualquer interesse. Esse interesse pode esgotar-se num minuto de fama, na resolução de um problema conjuntural, no abate de um adversário ou na promoção de um apaniguado ou pode traduzir-se em prestar um serviço, fazer uma revelação útil, fornecer um documento esclarecedor, repor a verdade ou denunciar uma injustiça. Claro que o dia está cheio de meras ajudas factuais desinteressadas, observações próprias e experiências vividas, mas na maioria das vezes o jornalismo não se esgota aí.
Em período eleitoral, o risco é acrescido. E, a uma semana e meia do fim, já ameaça ser particularmente perigosa. Começou com os papagaios de Tancos.
Pura só a informação “roubada”. Aquela que o jornalista consegue obter, contra a vontade de todas as partes envolvidas por a considerar relevante e ao serviço do interesse público e do bem comum. Essa é, geralmente, escassa e, embora inopinadamente se possa tropeçar nela, a verdade é que, na vida de um jornalista, poucas vezes se consegue. A restante, mesmo numa investigação jornalística, é quase sempre cedida por quem tem mais a ganhar em que seja conhecida ou tem menos a perder com a sua divulgação, parcial ou total.
É por isso que, chegada às mãos do jornalista, a informação é alvo de uma primeira triagem, numa espécie de fase Sherlock Holmes: “A quem aproveita o crime?”. Se parte de um processo, em segredo de justiça, aterra na nossa secretária ou vem parar às nossas mãos, temos de ser capazes de discernir se é verdadeiro ou falso, relevante ou irrelevante, suscetível de induzir em erro ou de nos aproximar da verdade.
Só em função das respostas obtidas, nesta fase, pode passar-se à segunda. Aí, teremos de saber se conseguimos, de alguma forma, enquadrar a informação, evitando ou reduzindo toda a manipulação que possa partir da fonte, se há forma de confirmar ou infirmar aquele e os outros conteúdos, garantindo que seremos capazes de balancear interesses contraditórios.
Por último, interessa ainda ver se existe, além de um possível interesse de quem está disposto a fornecer uma dada informação, algo de verdadeiramente novo e útil para que se compreenda melhor uma questão que nos faça sobrepor a todas as reservas o interesse máximo do bem comum. É preciso saber se daremos ao ouvinte ou leitor algo a que ele tem direito: uma informação importante para compreender melhor um dado assunto ou, simplesmente, o mundo que o rodeia.
O jornalista fica ainda obrigado a preservar a fonte, mas a identificar, com clareza, em que “lado se coloca”, ou seja, qual a parte que defende aquele ponto de vista específico. Isto se não houver maneira de obter um quadro mais geral.
Feita toda esta viagem, pode acontecer que o segredo de justiça não apenas “possa”, mas sobretudo “deva” ser violado, arcando, naturalmente, com as consequências legais inerentes à sua violação. Factualmente, o jornalista sabe que ao dar eco à “fuga” e ao ampliar o seu conteúdo, está ele próprio a violar um segredo que apenas existe para proteger os mais fracos dos envolvidos, garantindo o seu direito a uma justiça justa.
Ora, se todos sabemos que a data limite para conhecermos o teor definitivo de uma dada acusação (como a de Tancos!) está a esgotar-se ( 27 de Outubro) e, na antevéspera, alguém nos passa a informação de que o Ministério Público teve acesso a uma escuta relevante, que pode o jornalista fazer?
Se nos garantirem, por exemplo, que a escuta se refere a alguém que não será acusado nem visado na acusação final, pode manter-se o nosso interesse? Claro que sim. O interesse em conhecê-la é legitimo.
E se a tese passar por tomar a expressão “papagaio-mor do reino” como sinónimo codificado de Presidente da República?
Nesse caso, a coisa tem de fiar mais fino. Porque Marcelo é inimputável? Não, mas porque traduzir “papagaio-mor” por Marcelo Rebelo de Sousa das duas uma: ou resulta da existência de uma chave de código que o prove ou não faz, por si só, sentido nenhum. Soube-se hoje, quem já leu a acusação, que quem se refere ao tal “papagaio” acha também que existe um lobby de porta-vozes informais da Presidência de que fazem parte, nomeadamente, José Miguel Júdice, Marques Mendes e Miguel Sousa Tavares.
Podem os procuradores efabular o que quiserem, mas não basta uma efabulação judicial ao estilo: em quem se pensa quando se refere à expressão “papagaio”? Alguém com pensamento próprio ou ao serviço do pensamento de outros? Que repete a mesma coisa ou diz coisas diferentes?
As notícias não podem reduzir-se aos delírios semânticos. Se as minhas fontes se limitam a insinuar, como “óbvia”, uma leitura como a que levou o Presidente português a convocar os jornalistas em Nova Iorque para afirmar “o Presidente (português) não é um criminoso”. Ironia máxima: nesse dia, o presidente dos Estados Unidos foi alvo de um processo de destituição e o ucraniano teve de justificar que não foi alvo de pressões de potências externas.
Os jornalistas não podem ser usados como pés-de-microfone nem como uma espécie de “papagaios” da República. E em campanha eleitoral todo o cuidado é pouco.