31 out, 2019
O que se pode desejar à senhora Lagarde, agora que vai começar o seu trabalho à frente do BCE? Sorte. Muita sorte. Draghi sai com uma aura com a qual vai ser muito difícil competir. Provou que, afinal, a palavra de honra ainda serve no mundo atual para fazer face até aos poderes mais obscuros e irracionais, que vezes demais parecem dominar os chamados “mercados”.
Será que Lagarde pode sequer ambicionar desafiá-los de novo? Ou a crise que espreita e se vem fazendo anunciar é muito mais do que rumores especulativos de agentes nervosos e desta vez o ciclo económico não se fará anunciar mais cairá sobre nós, inevitavelmente e com estrondo?
A história de "Pedro e do Lobo" não é apenas uma fábula infantil. Os profetas da desgraça na economia tendem a ser pouco ouvidos e, quando o lobo vem, já toda a gente se esqueceu dos primeiros anúncios. Há meses que o diabo está quase a chegar, e a verdade é que ainda não chegou, apesar de já ter parecido estar muito perto.
Draghi disse, no pico da última crise, ainda em 2012, que faria “tudo” para salvar o euro e acrescentou: “Acreditem que será suficiente.” Perante esta ameaça, os especuladores fizeram contas e concluíram que talvez lhes pudesse sair caro demais continuarem a arriscar levar à falência a moeda única e, por arrasto, a Grécia, Portugal, Espanha e Itália.
Eram países demais e o Banco Central, embora não tivesse, nessa altura como agora, muitas armas disponíveis, fez crer que tinha, pelo menos, munições ilimitadas e de efeito imprevisível. Depois, juntou-lhes criatividade q. b. (acabou por acumular no respetivo balanço 4,7 biliões com a compra de novos títulos). Resumindo: mostrou que a ameaça era credível e os mais gananciosos bateram em retirada.
As taxas de juro da dívida baixaram de tal forma que estão hoje negativas. Os títulos de dívida tornaram-se assim negócios seguros, foram mudando de mãos a ponto de hoje estarem praticamente abrigados nos chamados institucionais prudentes. Isso é melhor? Ninguém sabe. A dívida nacional concentrada em bancos e fundos nacionais é sempre um pau de dois bicos: ficam excluídas as medidas radicais e não há mais negociação externa que nos valha. Na hora de ir ao fundo, a banca pode tornar-se até mais vulnerável. E a nossa, estando um bocadinho melhor, ainda tem debilidades.
O governador Carlos Costa lembrou ainda que a esta(...)
Apesar de algum sucesso, os objetivos do BCE estão longe de estar cumpridos: o crescimento médio pouco supera 1%, ou seja, pouco ultrapassa a quase estagnação, e a inflação (espécie de sal do crescimento) não consegue atingir os 2% considerados como limite ideal.
Draghi despediu-se do cargo ao fim de oito anos sem nunca ter subido taxas de juro e fazendo mais um apelo aos líderes dos países do Euro, reclamando aos que tivessem excedentes comerciais que não os deixassem aumentar (Alemanha incluída) e a todos os restantes, que não agissem com excesso de zelo no cumprimento das metas do défice. É fundamental que os Orçamentos “também façam a sua parte para promover o crescimento”.
Neste ponto a senhora Lagarde, que já reconheceu os erros da receita austeritária do FMI, não deixará de subscrever as palavras do antecessor. Ela saberá como ninguém que a velha receita agrava mais a doença do que promove a cura.
Mas, nos últimos anos, o mundo voltou a mudar: sem nada onde investir com rentabilidade minimamente atrativa, as poupanças também se reduziram. O imobiliário voltou a ser investimento de refúgio e as várias “bolhas” começam a espreitar de novo. Em Portugal, a par do Turismo que nos trouxe crescimento, surgiu o imobiliário, desta vez disfarçado de reabilitação urbana.
Picar as bolhas, puxando o tapete aos novos especuladores, não dá normalmente bom resultado. Resta esperar. Os défices externos não deixaram de ameaçar países como Portugal, embora o crescimento tenha regressado a níveis que, noutro tempo, seriam considerados “miseráveis” e de quase estagnação. Além disso há fenómenos novos a que não estávamos habituados. Por exemplo; o emprego cresce, quando antes só acima dos 2% o desemprego começava a cair. E, no entanto, uma das poucas certezas é de que esse novo emprego vai enfrentar, não tarda, o efeito devastador do choque tecnológico em curso.
Além das vulnerabilidades inerentes ao envelhecimento súbito de todo o continente europeu (Portugal aqui será mesmo campeão), a somar ao que já se antevia noutros espaços, a tensão geopolítica torna o curto prazo mais imprevisível do que nunca.
Cowboys de regresso
Os Estados Unidos vivem o momento mais louco da sua politica externa marcada pelo fascínio aparente pelo antigo inimigo russo, o “marialvismo” arriscado face a poderes autoritários como o norte-coreano, o desafio permanente ao imprevisível Irão, a provocação temerária ao gigante chinês. Uma política embrulhada num misto de amor-ódio, e pela alteração ostensiva em matéria de apoio à Europa, à mistura com uma espécie de desprezo face à velha Nato e a sensata ONU.
Tudo a somar às alianças espúrias com países como o Brasil e a quase indiferença perante uma América Latina e Central totalmente desestabilizada. O Chile, a Venezuela, a Colômbia, ou a Bolívia não estão apenas na miséria - estão à beira de se transformarem em Estados falhados. Perante tudo isto não há réstia de humanismo ou compaixão no discurso dos novos “cowboys”. A retirada do tapete aos curdos ou as declarações sobre as circunstâncias da morte do líder do autoproclamado Estado Islâmico parecem simplesmente “insensatas”. Todavia, contra tudo e todos, Trump soma e segue e parece estranhamente “inspirador” de uma direita populista de extremos, ora libertários, ora ultraconservadores, mas sempre nacional-proteccionistas. Contra a livre circulação de pessoas e mercadorias, mas escandalosamente “devota-dependente” da livre circulação de capitais.
Há uma guerra comercial em aberto com a China. Os preços do petróleo tornaram-se uma incógnita absoluta. Podem subir de um minuto para o outro, ou cair a pique e levar à desestabilização total dos produtores. Há eixos de transporte essencial de energia sujeitos às novas ameaças, numa espécie de guerra contra uma pirataria desorganizada.
Há bombas nucleares à disposição de demasiados poderes e mísseis de longo alcance que ninguém sabe se podem efetivamente atingir qualquer uma das nossas cidades. As catástrofes naturais e os fluxos migratórios aumentam a pressão sobre as várias economias. E há continentes onde as ameaças apenas variam entre a seca, a fome, ou a guerra. Tudo contra o desenvolvimento.
O melhor já passou
Como se tudo isto não bastasse, os ciclos económicos teimam em existir. O melhor do ciclo atual, infelizmente já passou. Essa é uma das poucas certezas presentes. Os últimos anos foram de conjuntura externa única e favorável. O mundo, como um todo, experimentou um período de expansão, que sabemos que vai acabar em breve. Só não sabemos como nem quando.
Sim, o diabo vem mesmo aí. Pode chegar daqui a um, dois, talvez três anos. Mas pode aterrar nuns escassos três meses. Diz quem percebe destas coisas de mercados que “os fundamentais da economia” (e isto é claramente verdade para Portugal!) não melhoraram muito desde a última crise, pelo que a próxima pode ser vinte vezes pior. Tirando o exagero, pior certamente será.
Os problemas da banca estão longe de se encontrarem superados, a união bancária na zona euro ainda vai a meio, sem mecanismos de proteção suficientes. Basta um safanão e regressam os problemas. Os novos gigantes tecnológicos alteraram o modelo de negócio de demasiados sectores (incluindo “media”, comércio e boa parte dos serviços) e fogem a qualquer controle. Chegada a hora, talvez o Google, o Facebook e os restantes confrades tenham gerado mais ilusões do que riqueza “real”.
Uma nova crise pode arrastar consigo sectores inteiros. E estamos muito longe de estar preparados para os efeitos enormes da robotização e da inteligência artificial massificada. Hoje já não temos décadas para nos prepararmos para nada. Tudo o que nos ameaça já nos ameaça há décadas e o tempo de adaptação já passou. Não, não nos adaptámos. No caso português andamos a discutir há meio século onde fazer um aeroporto que temos agora de pôr em pé nos próximos três anos. Ainda falta estudar mais umas coisinhas. Parecer ambiental positivo já há, mas com condições pesadas. Será preciso gastar 7 milhões para proteger as aves, ou para nos proteger delas mas ainda ninguém garantiu que isso basta para evitar que um passaroco rebelde atire abaixo um avião. Durante 30 anos esse era o contra-argumento para escolher o Montijo.
Talvez o furacão que se anuncia mude de rota. Senão, boa sorte, senhora Lagarde. Não sendo economista, terá a enorme vantagem de preferir a política, imune às velhas teorias, e às velhas receitas económicas, que não nos servirão para quase nada.