22 nov, 2019
O senhor Chega não pode chegar, assim de repente, e reivindicar para si, como quem não quer a coisa, a mais importante vitória do pós-25 de Abril. É caso para dizer que chegou tarde demais a esta luta que, não sendo de todos, foi de muito mais do que o Chega parece querer fazer crer e gostaria que tivesse sido.
O 25 de novembro de 1975 é de todos os que estiveram do lado certo à hora certa. Ramalho Eanes estava entre eles e foi quem comandou a operação. E talvez valha a pena apurar, junto do próprio General, o porquê de tanta discrição na comemoração do resgate da Liberdade recém conseguida. Discrição de todos. Dele, de Melo Antunes e Jaime Neves e de tantos outros que à época se juntaram a eles.
Mas ficámos sobretudo a conhecer o General, então tenente-coronel e a que Rui Ramos chamou “a figura mais enigmática da nossa história recente".
"Como é que um jovem (tinha 41 anos), de quem muito pouca gente ouvira falar no verão de 1975, se converteu no candidato dos maiores partidos à Presidência da República em 1976?", pergunta o historiador. "Como é que um candidato apoiado pelo PS, pelo PSD e pelo CDS, contra o PCP, foi, nos anos seguintes, veementemente contestado pelos líderes do PS, do PSD e do CDS, e quase só acatado pelo PCP?"
Eu arrisco-me a explicar, como um dia me explicou o saudoso general Loureiro dos Santos: chama-se amor à pátria, espírito de serviço, integridade, tolerância, honradez e, claro está, independência. Como é que um Presidente da República, que afirmou ter um projeto de sociedade compatível com o do PSD e do CDS, “se converteu na última grande esperança de Álvaro Cunhal para aumentar a influência política do PCP?“, volta a perguntar Rui Ramos. Arrisco de novo: porque não caiu na armadilha de lhe oferecer mártires e não entrou no logro da ostracização. E continuou só fiel a ele próprio.
Ao PCP foi apenas exigido que se adaptasse à luta democrática e ajudasse a construir a própria Democracia.
Centristas defendem também que o Parlamento passe (...)
Muitos outros estiveram com Eanes e com ele partilharam a vitória. Cito alguns: à esquerda, Melo Antunes (do então chamado Grupo dos 9, vencido no Conselho de Revolução contra o grupo radical de "gonçalvistas" que queriam que a revolução se eternizasse e se consolidasse em torno de uma ditadura de esquerda) e, à direita, Jaime Neves, o homem que liderou os Comandos, com a difícil tarefa de fazer valer a sua razão perante os camaradas golpistas (onde se destacavam os páraquedistas e a polícia militar).
Bastavam estes nomes para que o Chega, ao chegar, já não lhes pudesse morder os calcanhares, mesmo que fosse a pretexto de lhes vir prestar uma justíssima homenagem.
Nesse 25 de novembro houve heróis que deram tudo e arriscaram a vida para evitar uma guerra civil, vista como cenário inevitável. Sem inverter o caminho que o país era levado a percorrer até ali, tudo hoje seria bem diferente e, quase de certeza, muito pior.
Aliás, dos dois Comandos mortos que deram a vida pela liberdade nem os seus nomes sabemos, tal a nossa capacidade de esquecer os heróis improváveis.
Também houve vencidos. Os que além de sonharem com os cantos de abril escutavam outros cantos de sereia. Houve, além desses, os derrotados de abril e os rendidos de um 11 de março que abrira as hostilidades com a ala moderada do novo regime e tinha feito o verão mais quente de todos os demais.
Foi tão quente que a riqueza nacional se derretia à vista dos mais sábios a ritmo acelerado. Dois anos depois, as divisas em caixa já não chegariam sequer para descarregar o trigo que chegava ao cais. Foi forçoso chamar o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Vale a pena revisitar a História. Estávamos em finais de 1975 e o povo que juntara e enchera as praças em uníssono, nos idos de maio de 1974, para celebrar a liberdade, já estava cada vez mais dividido. Vivia-se o prenúncio da ditadura do proletariado, que a extrema-esquerda disputava com o PCP e que entrara de rompante nas empresas e punha de pantanas a economia.
A 25 de outubro os militares moderados, membros do Conselho da Revolução, tinham pressa em regressar aos quartéis, entregando aos partidos a missão de levar por diante o regime democrático. Mas, nem todos. Vasco Gonçalves e Otelo Saraiva de Carvalho resistiam com os seus mais próximos.
O discurso estava radicalizado, a ponto de surgirem inscrições em murais a afirmar “fascistas para o Campo Pequeno”. Aludia-se à possibilidade de fuzilamento em massa, ao estilo bárbaro, que ia marcando alguns prenúncios de velhas revoluções marxistas. Correm listas de proscritos entre civis e militares. A lógica esvaía-se e a vingança começava a pairar no ar, de lado a lado. A Igreja era aqui e ali alvo de chacota e dos mais variados ataques. Esquecia-se o contributo que dera, através de muitos cristãos, à luta pela liberdade e defesa dos pobres e dos fracos.
A extrema-direita, que existia, embora discreta, pagava na mesma moeda, sobretudo a Norte, onde Pires Veloso ia sustendo as derivas esquerdistas e mantinha sob controlo os militares, mas em muitas cidades as forças ultraconservadoras começaram por invadir sedes comunistas e tentaram fazer o maior ruído possível.
Seguiu-se, a 12 de novembro, o cerco ao Parlamento que durou dois dias e gerou a irritação do então chefe de Governo (Pinheiro de Azevedo, em substituição de Vasco Lourenço), que em vernáculo se dirigiu aos manifestantes e acabou por produzir dos mais originais episódios da nossa história democrática.
Governo em greve
Impedido de governar e com o povo entre gritarias na rua, o executivo, depois do sequestro, foi para casa e, a 20 de novembro, decidiu não governar mais sem que lhe assegurem condições de segurança e por isso “declarou greve”.
A esquerda militar radical viu, neste estado de coisas, uma oportunidade para controlar o poder. Em 25 de novembro um grupo de militares páraquedistas e da polícia militar saiu à rua na esperança de, com o apoio de Otelo (e do seu COPCON), impor um Governo de cariz totalitário concretizando o Processo Revolucionário em Curso (o célebre PREC). Os militares de abril mais moderados concentraram-se em torno de Eanes e puseram em marcha um contra-golpe, ao qual alguns oficiais mais à direita, como Jaime Neves, acabaram por se juntar, cumprindo o plano traçado pelo futuro general.
Depois do 25 de novembro, como recorda Rui Ramos, passou muito pouco tempo para que o militar “de cara fechada e óculos escuros” começasse a ser reconhecido por uma maioria que queria liberdade, mas que exigia o fim da arbitrariedade e do medo que começavam a germinar um pouco por toda a parte.
“Eanes foi eleito Presidente da República em julho de 1976, com 62% dos votos. Em segundo lugar, Otelo Saraiva de Carvalho teve 16%. Em público, a extrema-esquerda fingia inquietar-se muito com o general 'fascista'. A campanha eleitoral ainda tinha passado por momentos dramáticos, como o tiroteio que recebeu Eanes em Évora, então dominada pelo PCP. Numa atitude caracteristicamente temerária, Eanes subiu imediatamente para cima do tejadilho do carro, impassível e desafiador.”
Esta imagem mereceu-lhe o respeito dos dois lados e remeteu-o, com Delgado, para o restrito grupo dos “generais sem medo”. Era clara a intenção de repor a ordem política, económica e social, fortemente abalada pelo crescente poder das milícias da extrema-esquerda e das comissões de trabalhadores. As ocupações e as nacionalizações já estavam em marcha. Os saneamentos atingiam tudo e todos. Bastava não ter o título de “antifascista”, revalidado no último ano, para muitos se verem forçados a partir para a exílio, na vaga de emigração até aí mais qualificada de sempre.
Empresas privadas e públicas descapitalizavam-se a ritmo acelerado, a que se esvaía também o melhor da sua experiência e capital humano. Em troca, comissões de gestão inexperientes mudavam o negócio, os processos e os mercados. Mesmo com as melhores razões, o resultado começava a ser trágico. O povo nas ruas começava a deslaçar.
Assembleia da República aprovou também um voto de (...)
O Processo Revolucionário em Curso, que ganhara corpo com o 11 de março de 1975, cavalgava a onda sob a batuta de Otelo Saraiva de Carvalho, numa espécie de orgia revolucionária e os ânimos iam de exaltação em exaltação, fazendo perigar o equilíbrio conseguido desde o primeiro momento do 25 de Abril.
Os cravos espetados nas G3 já tinham murchado e aqueles que estavam atentos aos sinais e aos riscos de uma deriva esquerdista assumiram o enorme risco de lhe pôr fim.
Nestas coisas de “tropa” facilitou o facto de muitos dos oficiais terem sabido estar do lado certo à hora certa. Eram dos mesmos cursos, tratavam-se por tu, tinham partilhado camaratas ou participado nas mesmas operações, conheciam-se às vezes demasiado bem para perceberem no outro até que ponto iria a determinação anunciada.
Foi isso que permitiu o recuo sem humilhação e a vitória sem prosápia. Pela segunda vez, num curto espaço de tempo, a liberdade era conquistada e reconquistada por militares. Sem erros inúteis.
Ramalho Eanes começou aí a merecer o respeito de todos os portugueses. Nunca precisou de muitas palavras e também não as desperdiçou. Quando se comemoraram os 40 anos do 25 de novembro foi desafiado pelos media a colher os louros desta ação icónica. Temeu instrumentalizações. Preferiu, mais uma vez, a discrição. Aquela que fez com que, durante anos, só o 25 de Abril que unia levasse a palma da liberdade.
A esquerda radical, vencida, acabou assimilada pelo regime (Melo Antunes opôs-se à ilegalização do PCP e isso prolongou a vida a um dos únicos partidos comunistas que não implodiu na Europa, mas queiramos ou não, esse foi o segredo da paz nas décadas seguintes).
O preço do resgate da Liberdade a 25 de novembro não foi baixo. Mas ela não teve nada a ver com uma questão de extremos. Muitos jogaram ali as suas carreiras. O contra-golpe falhado significaria uma mudança de rumo que nos levaria a mais umas décadas de atraso. Impediria o nosso caminho europeu. Seria hoje mais um atraso de vida … E mesmo com a vitória dos socialistas moderados, os danos da coletivização e da destruição de boa parte do aparelho produtivo nacional ainda se fazem sentir.
Este ano e mais uma vez, o CDS fez aprovar o voto de congratulação pela data. Pena só a divisão e indecisão abstencionista do PS, com meia dúzia de deputados a votar contra juntando-se aos do PCP e à extrema-esquerda, imutáveis há mais de 40 anos. Isto diz tudo sobre o tempo que ainda falta passar para se atingir a maioridade histórica.
O senhor Chega quer comemorar a ação dos Comandos no 25 de novembro? É justo. Mas talvez baste comemorá-la no próprio 25 de Abril. Aí, juntos, os militares salvaram a Pátria. Depois, evitaram apenas uma nova recaída.