19 dez, 2019
O Orçamento para 2020 propõe-se poupar oito milhões com a eliminação de mais 100 turmas sujeitas a contrato de associação. Nada que não estivesse previsto no programa de Governo. Uma pequena poupança “demagógica”, na continuação da estratégia que já leva quatro anos e que colocou em causa a sobrevivência de múltiplas escolas privadas, entre as quais algumas de excelência. Escolas com provas dadas em termos de qualidade de ensino e elevador social, coisa rara em todo o nosso sistema de ensino.
O último estudo PISA mostra que, entre nós, há meninos muito pobres e meninos muito ricos nas escolas públicas e nas privadas. Mas o estudo também diz que o simples facto de ser rico garante a 93% dos alunos ambicionar acabar licenciado, independentemente dos resultados escolares que vá obtendo. Enquanto apenas metade dos mais pobres se permite sequer “sonhar” com o canudo, ainda que o seu desempenho o justifique.
Isto não é resultado de uma escola privada que permite à elite a permanência no poder - é sobretudo resultado de uma escola pública que não impede que os pobres fujam à armadilha da pobreza: pais pouco instruídos desvalorizam a educação, ganham menos, vivem pior, não conseguem ajudar os filhos nos trabalhos de casa nem podem pagar a explicadores. Por isso, em certos estratos sociais mais baixos obter “um dez” deveria equivaler a “um vinte”.
Mesmo assim, em Portugal há 10% de alunos que saltam do fim da escala social para os 10% de alunos de excelência. Mostram com isso enorme resiliência. Mas na Estónia são 16%, na Irlanda 15% e no Reino Unido 14% os que conseguem dar o mesmo salto.
Voltando à redução do número de turmas “contratadas” prevista no OE, uma poupança de oito milhões é dinheiro. Não o subestimo, sobretudo se ali ao lado há escolas públicas, a trabalhar a meio gás, e capazes de receber por inteiro a população despejada das escolas privadas que deixam de ser subvencionadas para os acolher. Vai-se a liberdade de escolha daqueles escassos três mil alunos, mas, paciência. Economicistas “dixit”.
O que merece discussão não é esta derradeira decisão de uma estratégia que nem sequer nasceu com a “geringonça”. Importa ir ao fundo da questão e discutir se o serviço público pode ou não, e em múltiplos casos com vantagem, ser prestado por privados. Neste caso concreto, trata-se ainda, com essa possibilidade de opção, baseada na subsidiariedade dos privados, de dar alguma substância ao princípio constitucional da liberdade de escolha em matéria de educação.
A dimensão da poupança e a adesão à medida orçamental talvez se reduza sabendo que o bolo total de gastos no ensino básico e secundário ultrapassa os 6,4 mil milhões. Ora, os oito milhões poupados com a eliminação de mais 100 turmas sujeitas a contrato de associação não chegam sequer para continuar as obras, já em curso, na reabilitação do mítico liceu Camões em Lisboa (só em 2020 serão gastos mais 12 milhões, a somar aos 3 milhões já gastos) e é tanto quanto o que o Estado vai gastar na escola do Parque das Nações, ou seja, numa única escola num dos melhores bairros da capital.
É certo que, pelos vistos, não há muito mais imaginação sobre onde é possível poupar porque, por exemplo, “com o aumento da eficiência educativa” o Governo só pensa conseguir gastar menos 2,3 milhões; e com a eliminação de comissões bancárias pagas para o processamento dos salários pretende economizar quatro milhões (o equivalente ao que gasta com 50 turmas em contrato de associação!).
A questão não é de custos. É meramente ideológica. Parte do pressuposto de que a escola privada e a escola pública correspondem a dois lados da barricada. A direita alinha pela primeira e a esquerda pela segunda e assim não há orçamento de esquerda que se preze se continuar a financiar meninos pobres para frequentar a escola dos meninos ricos. Menos ainda se já não existe o pretexto de falta de alternativas.
Claro que, já no que se refere a criar condições para que exista uma verdadeira rede de pré-escolar, o Estado será forçado a fazer exatamente o mesmo que em tempos de escassez de escolas básicas fez criando os ditos “contratos de associação”. Mas, desta vez, fica claro que, logo que a rede pública esteja completa, a rede privada será descartada ao virar da esquina. Venha quem vier.
Em Portugal foi um Governo PS de Guterres (o da “paixão pela educação”) que avançou com os contratos de associação, generalizando territorialmente uma oferta escolar que o Estado não estava então em condições de assegurar. Nos últimos anos, começando em David Justino, passando por Passos Coelho e acabando em Brandão Rodrigues (com a luta dos “coletes” amarelos”) o desertificado parque escolar público foi repovoado à custa da falência de colégios com contratos de associação. Este tipo de ensino é hoje meramente residual.
Mesmo assim a sua morte lenta continua. Agora prévia e abundantemente anunciada, minando a discussão que lhe subjaz: deve ou não o Estado assegurar ou, pelo menos, tentar oferecer sempre que possíveis opções de escolha aos pais que optem por um ensino diferenciado.
Como refere um texto de Homem Cristo no blogue da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), Portugal era já em 2016 uma espécie de originalidade na Europa: no nosso ensino básico e secundário apenas 5% dos alunos do privado recebiam financiamento estatal (três vezes menos do que a média em 21 países europeus), enquanto 17% dos alunos pagavam propinas (quatro vezes mais do que a média europeia!) para beneficiar do ensino privado, apesar de terem em opção a escola pública gratuita. Isto deve dizer alguma coisa.
E o que diz? Diz que vale a pena discutir o porquê ou os porquês desta escolha que é seguramente racional embora “anti-económica”. Há poucas coisas em que o investimento seja melhor remunerado do que o da educação. A liberdade de escolha (prometida constitucionalmente, mas nunca cumprida, é efetivamente muito importante para muitos pais. Mais importante, ainda, à medida que a escola pública gratuita se vai transformando ao ritmo dos últimos quatro anos numa escola profundamente ideológica, onde nos “curricula” passa transversalmente uma visão afunilada da história e do mundo, imbuída de uma mundividência pobremente relativista, que confunde tolerância com concordância acrítica e em que tudo se subordina à competição hedonista e ao culto do egocentrismo, em detrimento de valores tão simples quanto o da compaixão, solidariedade, cooperação .
Há exceções? Claro. Há quem estimule o pensamento próprio e fomente a crítica? Evidentemente. Mas há uma maioria em crescendo que confunde ensinar com debitar uma cartilha politicamente correta, apimentada por um jacobinismo retrógrado e um laicismo acrítico.
Numa coletânea, recém editada pela Associação Portuguesa de Escolas Católicas sobre “a escola de todos, com todos e para todos”, João Carlos Espada recorda, num texto de Abril deste ano o interessante trabalho efetuado pela revista “The Economist” sobre o tema da Escola Privada e onde se conclui que o apoio ao ensino privado não se opõe ao interesse público.
Nesse trabalho, ao longo de 12 páginas da revista britânica, analisa-se a explosão das “Charter Schools”, onde o ensino de excelência faz milagres entre uma população infantil americana particularmente pobre de vários Estados. Um fenómeno que já tem 30 anos de provas dadas. Estuda também a experiência das “escolas livres” e das “academias britânicas”, que hoje abrangem 75% dos alunos do secundário e 25% dos alunos do básico, bem como a experiência holandesa, onde três quartos dos alunos estudam em escolas privadas financiadas pelo Estado.
A preferência de tantas famílias de classe média e média baixa por estas escolas prova até que ponto pode ser errada a perceção de que o ensino privado é um instrumento da elite para a elite, passando a vê-las como um ascensor social particularmente eficaz na dispersão do mais forte dos poderes do futuro: o conhecimento.