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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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​Dois terços da população ativa viu o salário descer ou já tem fome

27 abr, 2020 • Opinião de Graça Franco


Vamos sair desta? Claro. Mas para isso talvez se tenha de evitar sacrificar, pelo menos, mais duas gerações a somar à geração grisalha, descartada precocemente na crise anterior. Essa sofrerá mais um embate, mas pior será a situação da pobre geração “à rasca”, os agora trintões, que entraram na vida adulta em plena crise, atrasando os seus percursos profissionais para sofrer agora, de novo, em cheio, com o embate da nova crise.

Perto de três milhões é muita gente. O Inquérito de Abril da DECO diz-nos essa coisa aterradora: desde o início da pandemia, cerca de 60% da população ativa do país já sentiu quebras do seu rendimento. Ora pela entrada no desemprego ou lay-off (onde já estão quase dois milhões de pessoas a receber menos um terço do salário), ora pelo efeito de redução do número de horas remuneradas.

Não é, sequer, preciso acrescentar que 4% dos trabalhadores (quase 200 mil ) viram os dois membros do casal afetados, para concluir que a situação ultrapassou a catástrofe e se aproxima da emergência social, embora o fim do Estado de Emergência possa sugerir o contrário.

Em muitos casos estamos a falar de famílias a que já só resta um terço dos salários, para fazer face a quase tudo: eletricidade, água, gás, combustível, vestuário, saúde e alimentação. O outro terço já estava comprometido com o pagamento de um rol de dívidas (na maioria dos casos fruto da compra de habitação própria, em resposta à especulação do mercado de aluguer, a somar a créditos ao consumo para compra de carro, educação etc…). Para muitos, a primeira a bater-lhes à porta é, mesmo, a fome.

Ao contrário do que alguns tentam fazer pensar, o povo português é bom pagador e, mesmo a custo da saúde, a prestação pela compra da casa é a última a ficar por pagar. Para já, as moratórias acordadas pelos bancos podem reduzir a angústia, mas não a eliminam.

Como ainda, nesta segunda-feira, dizia, à Renascença, o professor José Reis: a ação do Estado, neste momento, tem de ser a de assegurar os meios para evitar uma crise social grave ao mesmo tempo que tenta resolver a crise sanitária e coordenar internacionalmente a saída do confinamento, de forma a evitar a repetição da crise económica das dívidas soberanas em países onde, como Portugal, o endividamento (famílias, empresas e Estado) é ainda muito elevado.

O professor lembrava que as agências de rating continuam à espreita e ainda, há poucos dias, a Fitch (uma das maiores e mais influentes), já reduziu o outlook da dívida portuguesa para “negativo” embora ainda sem alterar a notação. Se nos endividarmos mais, terá de ser via Banco Central Europeu (BCE) e a “muito, muito, longo prazo”.

A somar ao estudo da DECO que vem dar força à denúncia de D. José Ornelas, feita há já algumas semanas, sobre o regresso da fome a Setúbal, com as refeições servidas em centros paroquiais a triplicarem, junta-se o grito de Isabel Jonet presidente dos Bancos Alimentares Contra a Fome, quando reconhece que em 27 anos de atividade social: “nunca viu nada assim”.

O bispo de Setúbal falava do aumento, para o triplo, das refeições servidas em vários centros paroquiais diocesanos, para fazer face ao desespero dos trabalhadores migrantes, recém-chegados à cidade e frequentemente ilegais, remetidos à inatividade, pelos efeitos do confinamento nos setores do turismo e restauração, que os atraíram ao país próspero do boom do turismo.

Isabel Jonet, na entrevista à Renascença, no domingo, dá conta de uma outra realidade, também ela improvável: só na semana passada, recebeu mais 11,5 mil pedidos de famílias em busca de ajuda alimentar. Uma população que, há poucas semanas, acharia impensável ver-se nessa situação: jovens, alguns muito qualificados (como os dentistas) ou trabalhadores por conta própria (agentes turísticos, esteticistas, cabeleireiros, motoristas…). Muitos, arrastados para a penúria por força da crise sanitária, que, ao fim de mais de 45 dias sem receitas, esgotaram as suas magras reservas e se veem, agora, a braços com o inimaginável: frigoríficos vazios ou, apenas, com “os restos” de alguma ajuda anterior.

O desespero destes novos profissionais que o desemprego da crise anterior lançou para o mercado do risco (pomposamente rotulado de empreendedorismo) é um dado novo nesta segunda crise do século. Muitos já mudaram de atividade várias vezes e, quando pareciam estar finalmente a levantar a cabeça, estão de novo em risco de afogamento. Não tiveram sequer tempo para que os seus pequenos negócios chegassem à maturidade. Muitos outros, ligados à sociedade dos serviços e altamente dependentes da procura interna, ou contribuindo para o crescimento das exportações, mas muito dependentes do pico do turismo/restauração não chegam a ver o fim do túnel.

Estes microempresários endividaram-se demais. Depois de recebidas as parcas ajudas correspondentes aos subsídios de desemprego recebidos de uma só vez, tiveram de se recapitalizar junto da banca para criarem os seus próprios empregos e darem emprego, sobretudo a familiares e próximos. Isto explica porque o emprego cresceu tanto quando a economia ainda quase estava estagnada.

Reanimaram um débil tecido social, mas não chegaram a dar um novo músculo à economia. Criaram as micro empresas de transporte escolar, os tuk-tuk, as micro agências de promoção de eventos, de entregas ao domicilio, prestação de pequenos serviços como limpezas domésticas, deram corpo aos ATLs, à rede de campos de férias e promoção e animação turística ou desporto radical, mas pouco mais.

Muitos deles chegaram, em dois meses, ao limite da sua resistência. Agora nem sequer terão coragem para se candidatar a novos empréstimos. Asfixiados, como estão, entre encargos fixos, impostos devidos e salários que já não conseguem pagar nem aos próprios.

Alguns, prevendo o filme das infindáveis burocracias para o acesso às prometidas ajudas, mesmo antes de chegar ao fim do primeiro mês fecharam portas para evitar males maiores. Mesmo para os que ainda sobrevivem, “em cuidados intensivos”, a salvação só virá sob a capa de subvenções que os mantenham à tona de água no mercado em convulsão.

Pedir a esta gente que volte a alavancar o negócio, num mundo totalmente incerto, é um quase insulto ao bom senso. Ora, para já, da Europa, ainda só vieram uns tímidos “sinais” que vão demorar meses a chegar às carteiras dos afetados e, nos apoios nacionais já anunciados, a rapidez com que se anunciaram não corresponde à fluidez para os bolsos dos interessados.

Junto das pequenas e médias empresas chegam, ainda timidamente, mas as micro sufocam no meio do “complicómetro” que se sobrepõe a qualquer “Simplex”. Basta falar com um destes empresários para o confirmar. Começa na agricultura (onde, apesar de tudo, a procura se mantém razoavelmente quer interna quer externamente) e vai atingindo, cada vez com mais violência, qualquer outro setor.

Os trabalhadores por conta própria e os que trabalham a recibos verdes, para receberem, agora, alguma ajuda estão imersos em papelada. Muitos sem possibilidade de recorrer a ajuda ou decifrar a burocracia imposta. Daí a importância de agir rápido abdicando da atitude típica da administração central: a desconfiança nos pobres.

Nos Estados Unidos, cada americano está a receber um cheque (os que Trump pretende fazer seguir com a própria assinatura). Talvez por cá se pudesse fazer o mesmo em relação a estes casos. A primeira bóia de salvação, por pequena que seja, pode evitar o mergulho na armadilha da pobreza de milhares de pessoas.

Numa semana, só entre as novas famílias que recorreram ao Banco Alimentar estarão envolvidas mais de 55 mil pessoas. Mas há mais. Aos 336 mil desempregados, de fevereiro, já se juntaram dados dos sindicatos quase mais 50 mil e os casos de “lay-off” superam 1,5 milhões. A DECO aponta para que a redução de salários de dois membros de um casal já atinja 4% da população ativa.

Só se pode sair disto “com os recomendáveis passinhos de bebé” garantido o não agravamento da crise sanitária, se tivermos a coragem de fazer diferente. Para momentos extraordinários, medidas excecionais. O que não se pode, como ontem aqui bem advertia Daniel Traça, numa importante entrevista à Renascença é desconfinar para voltar atrás. Isso “quebra a confiança” e a economia não resiste a um eventual recuo. Mata-a. É isso que terá de ser ponderado esta terça-feira. Não vá dar-se um passo maior do que a perna só porque os opinadores estão cansados do cansaço do povo e o povo cansado e de estômago vazio. Neste caso a emenda destrói o soneto.

Se a Alemanha pode ajudar uma única empresa com o equivalente a metade das ajudas ao nosso SNS que a União parece querer colocar à disposição do nosso país numa pluralidade de linhas de crédito (os 4 mil milhões equivalentes a 2% do nosso PIB) fica claro que a divergência entre economias só poderá agravar-se.

Se um quarto das nossas exportações vai direitinho, para Espanha, a braços com uma crise equivalente à nossa, não é preciso ser economista para perceber que a retoma não vai ser imediata, sobretudo quando 45% da riqueza nacional é, agora, dependente das vendas para o exterior.

Vamos sair desta? Claro. Mas para isso talvez se tenha de evitar sacrificar, pelo menos, mais duas gerações a somar à geração grisalha, descartada precocemente na crise anterior, forçada a sair da vida ativa e que hoje tem pensões de miséria, totalmente incompatíveis com as expetativas criadas ao longo das suas longas e bem-sucedidas carreiras. Essa sofrerá mais um embate, mas pior será a situação da pobre geração “à rasca”, os agora trintões, que entraram na vida adulta em plena crise, atrasando os seus percursos profissionais para sofrer agora, de novo, em cheio, com o embate da nova crise.

Tudo isto se conseguirmos evitar que a nova pandemia arruíne também, prematuramente, o futuro da geração dos adolescentes que já nasceram no pós-11 de setembro e vão atravessar agora a maior recessão dos últimos 100 anos. A começar já num acesso à Universidade que será tudo menos aquilo para que se prepararam.

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  • desabafo assim
    29 abr, 2020 Porto 11:20
    O salário do medo é a base desta pandemia, não que não haja motivo para o medo, mas que os efeitos se vão refletir no salário é factual.