20 mai, 2020
“Agarrem-me, senão... ainda deito tudo a perder e faço-lhes a vontade”. O discurso de Pedro Nuno Santos de ameaça de “insolvência” da TAP, a transportadora aérea de que é accionista maioritário, arrisca-se a terminar assim. Num ridículo que mata e nos pode custar um segundo Novo Banco. Com uma agravante: desta vez não há culpas a partilhar com o Governo anterior. Foi o Governo socialista que entrou, de novo, no capital da companhia, a pretexto de se tratar de um ativo “estratégico” e, se meteu na boca de um lobo privado, sem sequer conseguir “mandar”.
Um ministro assim cria a António Costa mais problemas do que se estivesse oficialmente a representar o Bloco de Esquerda num Governo de coligação ao estilo “Geringonça II”. Nesse caso, seria mais fácil justificar os custos das divergências constantes com o primeiro-ministro e a deriva “populista /chavista” do ministro, com os benefícios do apoio parlamentar à esquerda. Assim, nem isso.
O líder socialista não foi ao engano. Pedro Nuno Santos há muito que dá mostras, sistematicamente, do que é e, sobretudo, do que gostaria de vir a ser. O “Nunismo” bate palmas a cada diatribe ministerial. Quem achava, como Pedro Nuno Santos, no pico da troika, que Portugal podia recusar, unilateralmente, pagar a dívida pública, fazendo os banqueiros alemães “ficar com as pernas a tremer”, mostra bem o entendimento que tem dos processos negociais mais complexos e revela só estar preparado para este tipo de negociação histriónica.
Costa viu no deputado, até aí, quase desconhecido fora do PS, o seu Varoufakis. Achou, além disso, muito útil ter por perto quem lhe podia fazer frente na liderança partidária, não correndo o risco de o deixar andar por aí à solta com um discurso à Maduro. Eis a fatura. O que foi muito útil em termos de “Geringonça” tornou-se “tóxico”, em termos de governação minoritária Socialista.
Mas uma coisa era tê-lo a negociar com Catarina Martins e Jerónimo de Sousa, outra entregar-lhe a pasta das Infraestruturas. Agora, que ele tomou balanço num negócio como o da reprivo-nacionalização da TAP, que nos pode custar milhares de milhões de euros, pouco resta ao chefe do Executivo: ou demite o ministro e cede às pressões de ex-advogados de negócios, como José Miguel Júdice e companhia (vistos como os arautos do grande capital), ou opta por passar, discretamente, o dossier a um colega de Governo mais calmo, ou acabar a avocá-lo ao seu próprio gabinete.
O que Costa não pode é deixar à solta dois Centenos no Governo. Até porque, se o verdadeiro Centeno é a figura mais popular entre os portugueses, logo a seguir a Marcelo e mesmo antes de Costa (e uma mais valia interna e externa óbvia pela qual é preciso pagar um justo preço) já Pedro Nuno Santos não é mais do que um ministro ignorado pelos portugueses que só o conhecem por meia dúzia de tiradas, aos gritos, em pleno Parlamento aos estilo “agarrem-me , senão…”.
E, sobre o “senão”, vejamos como não há um único ponto de convergência entre o ministro das Infraestruturas e o primeiro-ministro em relação à TAP.
A TAP tem valor estratégico e não pode cair?
Independentemente de quem possa ter razão, porque a TAP, nos últimos tempos, teve carta branca para não cumprir com nenhuma obrigação de serviço público (não serve bem as ligações com as ilhas, arroga-se o direito de nem voar para o Porto, não cumpre com as obrigações impostas pela nossa diáspora e, nem sequer, se esforça por manter as aparências e apresentar-se a concursos públicos a que concorrem empresas como a British Ayrways) a verdade é que foi pelo seu valor estratégico que o PS prometeu e cumpriu com a reprivatização da companhia que Passos, bem ou mal, tinha conseguido descartar.
Costa tenta manter a coerência e, por isso, prometia em final de abril “não deixar cair a companhia”. Reivindicava mais mando, mas tinha o cuidado de anunciar que as conversações com os sócios não se fariam nem na praça pública nem via comunicação social.
E para serenar os credores e os trabalhadores diz que “fará o que for preciso” para salvar a companhia. Mesmo acossado pela Iniciativa Liberal, que por três vezes lhe coloca qual o limite desse “o que for preciso” e lhe dá exemplos de países bem maiores que deixaram afundar as companhias de bandeira como a Inglaterra, Costa relembra que Portugal não tem a força desses países e não se pode dar ao luxo dessas tiradas.
E que faz o ministro nas semanas a seguir a cada declaração?! Diz que a dívida da companhia é “brutal” e o Estado tem de negociar firme com os privados e, se necessário, deixar cair a companhia. Resultado: os banqueiros lançam mãos à cabeça, os novos obrigacionistas sentem-se, com razão, “traídos pelo accionista Estado, e os Trabalhadores sentem o chão fugir-lhes debaixo dos pés. Os privados esfregam as mãos e vêem um nicho de oportunidade de ver o fundo ao buraco onde estão enterrados.
O Estado deve passar a mandar na Comissão Executiva?
Pedro Nuno Santos defendeu há algumas semanas que se o Estado é forçado a meter mais dinheiro na companhia, no mínimo deve ter uma voz ativa na gestão e deixar o estatuto actual de observador a ver navios. Na verdade, o Estado não terá outro remédio porque, com um passivo superior ao activo em mais de 600 milhões (dados de 2018), a TAP está, objetivamente, em falência técnica e para sair daí, precisa de reforços de capital. Ou os contribuintes entram com a parte que cabe ao Estado, mais 350 milhões no mínimo, ou a falência deixa de ser uma mera tecnicidade.
E deve mandar no dia-a-dia da TAP assumindo lugar na comissão executiva da empresa? Até pode fazer sentido, mas Costa já disse que é contra. Mais disse mesmo, numa entrevista à RTP, que acha que, ao contrário do ministro, o dia-a-dia deve ficar para quem “percebe do negócio da aviação e o papel do Estado é dar orientações estratégicas e tomar parte nas decisões de investimento”. A divergência não pode ser maior.
A divida é mesmo “assustadora”? E o reforço de capital inevitável?
Para Pedro Nuno Santos, o slogan “quando é o povo a pagar é bom que seja o povo a mandar” não se aplica só à dívida. Chaves não diria melhor. No caso da TAP o problema é que, nalgumas opções estratégicas, que agora parecem ruinosas, o Estado concertou posições com os privados e também é, parcialmente, responsável pelo aumento da dívida.
Ela é mesmo assustadora e supera em muito os 3,3 mil milhões. No boom da aviação, a par do turismo e fruto da globalização, parecia seguro um plano de investimento que renovasse e reforçasse a frota da companhia.
A compra em leasing de dezenas de aviões teve o OK e o entusiasmo Estatal, a divida parecia um pormenor num negócio caro, mas que prometia “pagar-se” muito rapidamente. Até a renacionalização não parecia trazer demasiados riscos, nem demasiados custos, face à vantagem de voltar a ter uma companhia a que se pudesse passar uma carta de intenções de serviço público (o pior é que a TAP não cumpriu nem os serviços mínimos).
Agora, nem com o petróleo ao custo mais baixo desde os anos 60, há rentabilidade à vista. Os aviões de todo o mundo estão, agora, em terra. Todas as companhias estão a necessitar de ajudas estatais. Só a Alemanha, já injetou, na sua, mais de 8 mil milhões de euros. Os restantes países estão no mesmo barco. A Comissão Europeia já publicou, mesmo, o normativo a que tem de obedecer estas ajudas para não viciarem a concorrência.
A única certeza actual é que, além do reforço de capital para evitar a insolvência, a dívida não pode deixar de ser paga porque, senão, vão os credores com ela. Uma crise bancária, a somar a tudo o que já temos, seria fatal. A TAP não seria um mero “piparote” na banca que já está a passos do precipício outra vez.
Ou seja, se houve décadas de prejuízos e péssima gestão da TAP agora é o pior momento para o apontar porque o Estado volta a ter culpas, bem recentes, no cartório.
E, se o Estado é mau a prever onde investir, será certamente pior a decidir “rotas” ou a renegociar contratos de parceria e/ou aluguer ou a orquestrar despedimentos colectivos. Se há má altura para se meter na gestão diária e apanhar com os sindicatos em pé de guerra, talvez seja esta.
Como o jornalista Luís Aresta noticiou, esta terça-feira, na Renascença, uma coisa já é certa: o despedimento de mais de 1.700 trabalhadores e a venda de 30 aviões é considerado o custo mínimo de qualquer reestruturação da empresa. Os custos sociais são enormes e os económicos também. Resumindo: evitar a catástrofe já é praticamente impossível.
A estratégia do “ponham-se finos”
Pedro Nuno ainda não percebeu que os negócios quase sempre exigem maior recato do que as lutas de recreio. O valor de uma companhia também se avalia pela sua gestão, e pela concertação dos respectivos accionistas. Vir para a rua, retirar confiança aos sócios, faz perder valor ao ativo partilhado.
Se Costa ainda não viu que o jogo do “polícia bom” (que ele próprio representa sempre que fala da empresa) e do “polícia mau” (sempre que deixa ser o ministro da tutela a falar) não resulta, num caso tão grave quanto este. E, em última instância, pode sair aos contribuintes muitíssimo mais caro. Uma coisa é resistir a um Novo Banco outra, bem diferente, é criar um segundo.
Costa devia saber disso, mas não basta ir dando uma no cravo e outra na ferradura. Agora já não tem grande remédio. Se quiser repacificar a empresa, talvez só o consiga substituindo o ministro que faz voz grossa, vezes demais, por um que saiba mais do negócio e, a negociar, fie mais fino.