21 jul, 2020
Mais do que caracterizar o Estado da Nação, acho que chegou o momento de reconhecer o estado de inação a que chegámos. Ou o estado de negação com que teremos de romper se quisermos combater aquele que já se instalou entre nós.
Desta vez, certamente devido ao volume de fundos disponíveis e amplamente anunciados com origem na União Europeia, talvez não voltemos a ouvir: “não – há- di-nhei-ro-!”. Mas não nos podemos esquecer que ter dinheiro e não poder, ou não saber, onde o gastar é quase igual a não o ter.
São, supostamente, 45 mil milhões de ajuda externa nos próximos seis anos. Todos eles disponíveis para ajudar o país a entrar no novo mundo onde a Europa espera vir a ter voz. Um mundo mais energeticamente limpo e sustentável, mais digital e mais preparado para enfrentar um futuro onde o emprego sofrerá alterações radicais, mais educado e com mão de obra mais sofisticada e, sobretudo, menos dependente e mais resiliente na sua autonomia futura face aos colossos mundiais cujo poder tem vindo a crescer em exponencial.
Mas, a maneira como se chegou a esta chuva de fundos na última maratona negocial em Bruxelas comprometeu, decisivamente, um dos seus últimos e mais importantes objetivos: fazer da nova Europa e da nova geração Europeia uma voz forte e ouvida num novo mundo onde os reequilíbrios de poder são cada vez mais rápidos a reposicionarem-se e inesperados nas suas alianças pontuais.
Em Bruxelas o cenário de “barganha” foi absolutamente lamentável, com cada um dos “27” a tentar colecionar vitórias para consumo político interno e um total desprezo pelos ganhos do conjunto. Fica provado que as culpas atribuídas ao Reino Unido como “empata mor” eram manifestamente exageradas.
Os ditos “frugais” substituíram os britânicos com vantagem e fizeram triste figura. Sob a batuta, do desagradável, o primeiro-ministro holandês (obcecado com as eleições de março, onde espera conseguir desviar alguns votos da direita mais radical e eurocética que lhe ameaçam a reeleição) começaram por recusar liminarmente os subsídios a fundo perdido para os países mais afetados pela crise da Covid, exigindo, além disso, direito de veto sobre o eventual mau uso das ajudas.
Uma espécie de direito de veto à “má” utilização dos temíveis gastadores, traduzida numa troika informal a funcionar com dez olhos a observar os beneficiários, em permanência, até ao último cêntimo dispensado.
No final, mesmo com um corte de 20% nos 500 mil milhões de euros propostos pela Comissão Europeia (para ajudas a fundo perdido), ainda sobrou a aprovação do princípio da emissão de dívida europeia conjunta, e uns 390 mil milhões de ajudas não reembolsáveis.
O “veto” pretendido acabou por não ser aceite, tendo sido transformado em mero direito de acompanhamento pelo Conselho, salvaguardando a regra da maioria. O sapo engolido ainda foi gordo.
O Sul não conseguiu tudo o que queria. Com a ajuda da Comissão e do presidente Charles Michel preservou, apesar de tudo, o essencial. Os envelopes financeiros tiveram alguns reajustes, mas rapando o tacho do Quadro Comunitário de Apoio 21-27 lá se foi compensando as perdas com algumas outras benesses.
No caso português, restam cerca de sete milhões de euros dia entre ajudas a fundo perdido e empréstimos a juro baixo ao longo de seis anos. Muito dinheiro. Cada corte acabou compensado por descontos nos reembolsos devidos aos contribuintes líquidos (onde se inserem os “forretas” do Norte) e ainda se conseguiram 300 milhões de ajudas especificas para a região Algarvia mais afetada pelo Turismo. Costa saiu-se, convenhamos, razoavelmente bem.
Claro que houve programas cortados que nos eram particularmente caros: a ajuda à recapitalização de empresas, os reforços destinados especificamente ao reforço dos serviços de saúde e outros em que a absorção de fundos era muito mais fácil para países como Portugal ou desapareceram, ou sofreram cortes radicais e esse novo mapeamento é agora mais difícil de utilizar.
Talvez se dispensasse também aquela cedência óbvia ao senhor Viktor Orbán, mas a verdade é que até essa estava razoavelmente salvaguardada pelo texto dos tratados. Estes não permitem nem a presença de países antidemocratas na União, nem a sanção financeira a comportamentos políticos.
Resumindo, há vias diferentes de atuar. Costa tinha razão: cada coisa devia ser discutida a seu tempo e na sua sede própria. Paulo Rangel tem razão quando alerta para o facto de Costa não se ter manifestado contra Orbán e as suas tendências ditatoriais em sede nenhuma. É verdade. Mas se nos cingirmos à sede destas negociações é desculpável não o ter feito.
O que a Comissão Europeia alegou, para defender estas sanções financeiras às derivas autocráticas da Hungria e da Polónia, não passou de uma espécie de truque para reforçar a sua manifesta incapacidade de fazer os “27” exigirem aos novos governos radicais que o seu lugar não pode ser dentro da União, se não estiverem dispostos a jogar limpo no quadro de uma democracia. As ditas democracias “iliberais” não são mais do que ditaduras em fase de consolidação.
A Comissão foi apenas inteligente quando misturando o imisturável veio frisar que “a independência dos tribunais húngaros é essencial para não pôr em causa o bom controlo das verbas atribuídas. Uma desculpa, um bocadinho forçada, para dizer o mínimo. De qualquer forma a Comissão ganhou também esta batalha. A condicionalidade lá aparecerá nos detalhes do acordo, de que ainda não se conhece a totalidade dos textos.
Quanto ao eixo franco-alemão, que desta vez os quatro “frugais” tentaram desafiar, acabou também entre os vencedores: impôs a emissão de dívida conjunta, não cedeu na “bazuca” dos 750 mil milhões de ajudas totais e jogou com Macron fora de si, ao jantar, aos murros na mesa e a puxar as orelhas dos líderes “frugais”, acusando-os de só estarem interessados no show -off mediático totalmente desfocados dos interesses da União.
O facto de ninguém conseguir ainda medir os danos económicos que a pandemia causará, quer à Zona Euro quer à totalidade da economia mundial, não nos deixa saber se tudo o que ficou agora aprovado vai ser aplicado com a rapidez que se impõe para sequer reparar os estragos já causados.
Em Portugal que o programa Costa e Silva não consiga sair do papel a tempo de permitir um mínimo de execução das verbas disponíveis. Com uma agravante: não nos podemos queixar de não ter agora recursos ao nosso dispor. Só não vai ser fácil conseguir usá-los.