23 jul, 2020
Confinada, deprimida, fazendo o luto carregado pelo que não vivemos e de tanto o sonhar já tínhamos por certo como nos disse, sabiamente, D. Tolentino Mendonça, o cardeal poeta. O que ficou, por perto, para além das caras carregadas que as máscaras tornaram subitamente iguais e amedrontadas?
Amália fez cem anos e voltou. A voz vestida de preto, tremida e triste. O canto cristalino transformado em lágrimas. Vamos esquecer a saudade não vá voltar com ela o regime que fez com que só as guitarras gritassem as estrofes que ela não pôde cantar.
O risco existe. No Parlamento aprovaram, quinta-feira, uma lei que considera que o senhor presidente do Conselho não terá de se deslocar à Assembleia mais do que uma meia dúzia de vezes por ano. E é muito. Depois, se for preciso, vão os ministros e os ajudantes. Costa precisa de trabalhar. Precisamos todos. Mas ele mais, porque ainda tem emprego. O resto, menos. Pelo menos aqueles 749 mil (que o INE eufemisticamente chama de trabalhadores “sub-utilizados”) que ficaram de braços cruzados sem poder arregaçar as mangas. O número que o INE inventou, para não se dizer que mente. E ficaram assim de um dia para o outro, literalmente. Que os desempregados até desceram (vão em apenas 267 mil, porque 51 mil já desistiu sequer de procurar emprego). Quanto aos empregados, esfumaram-se 192 mil entre as várias estatísticas. São quase 200 mil a menos, por mais que o desemprego teime em descer…
Em Portugal as estatísticas dão nisto. Há para todos os gostos. Em junho, face ao ano passado, os desempregados registados subiram 38%. Coisa pouca. A verdade vista e sentida é esta: está tudo parado outra vez. Se não é lay-off, é desemprego, ou sub-emprego, ou inatividade (mais 156 mil). Toda a gente conhece os sem trabalho. Mas como os sem abrigo estão em casa. Ou melhor, finalmente abrigados. Invisíveis. Só para a sopa e os cabazes do Banco alimentar ainda há filas. E aí triplicaram. Foi o caos. No mais, reina o sossego, não vale a pena ir para o centro de emprego sem hora marcada. Bela maneira de acabar com as filas.
Ninguém atende nos centros de saúde. Ficámos todos bons num rápido repente. O SNS está finalmente de boa saúde. Não há doentes. Ficaram recolhidos. Que bela solução de ambulatório. O cirurgião tem finalmente vaga nas agendas. A gente vai desmarcando. Os táxis são caros e não se pode voltar para casa a pé quando estamos doentes. E há uma meia dúzia que teima em continuar a morrer de ataque cardíaco, e calor, e infeções várias.
500 milhões é tanto e lá estão eles, incluídos à pressa no Suplementar. Mas não hão de ser gastos, até podem sobrar, porque há tanto para gastar que nos perdemos e já nem sabemos por onde começar.
São tantos os milhões para as novas despesas que o défice aprovado foi revisto em alta de 6,3% para 7 e qualquer coisa. A riqueza também já foi revista em baixa um ror de vezes. Costa e Silva já a desceu 12 pontos. Tanto faz. Nunca se viu nada assim desde o princípio de século, mas os anteriores 9,8% também não. Nem os 6,3% iniciais nos vêm à lembrança. Na “troika” só se esfumaram quatro e pouco no pior dos pesadelos. Acima disso tanto faz.
O rapaz da energia quer à viva força gastar no hidrogénio. Para quê? Porque toda a gente vai apostar no hidrogénio e estamos fartos de ser pobres e sozinhos. Também que importa? A ele faz toda a diferença. Pede alternativas. Quem não quer continuar a pagar eólicas, e solares e outras renováveis que diga afinal aquilo que quer.
As metas europeias são para cumprir. Como nos tempos da troika. Compromisso é compromisso. Se não há multas. Ele (João Galamba) não quer, como eu também não quero, mais nuclear. Resta hidrogénio. Por isso vamos à luta pelos fundos comunitários. Por pouca coisa. São 2 a 3% produzidos por uma tecnologia que não dominamos e pode não resultar? Que importa? Se a Europa pagar, não faremos contas e estaremos lá. E há água em Sines? Galamba garante que sim. Imensa. Do mar e residual. Não será por falta de água que nos faltará hidrogénio. Quando muito, oxigénio é que nos pode faltar, tal a correria para poder gastar a tal chuva de notas.
A casa de família ao abandono. Os irmãos, os amigos, os primos que já não se conhecem ou depois de tantos favores trocados zangaram-se e estão presos. Os cofres arrombados. As barras de ouro atiradas pela janela fora. As flores espalhadas pela casa, já mortas que não se podem vender. A elite parece que desapareceu de repente. Gostava de ver, agora, as velhas listas de convidados das grandes empresas públicas. Filas inteiras vazias. Só com o lugar de Carlos Alexandre preenchido. Sofremos o assalto numa noite. Deitámo-nos como quem sabe que acordará feliz e agora já nem sabe o que será melhor. Os mais improváveis e os inimputáveis. A limpeza da casa vai durar tanto tempo que a sensação que temos é a de que já não vai chegar a tempo. Para os filhos, certamente. Para os netos, vamos ver.
Ficámos deprimidos. As instituições parecem desfazer-se como castelos de cartas. Só restam os formalistas e os formalismos. As filas permanecem para toda a sorte de papeladas. Não se termina um curso sem que nos levem couro e cabelo por um canudo feito em papel A4, sem timbre e selo branco. A burocracia perdeu a vergonha e tomou o poder. Pagamos tudo. Só a senha para a sopa da paróquia ainda é de graça.
Disfarçamos mal. Sem pingo de dignidade o estado de carência e abrangência com que nos tornámos pobres. Cada vez mais desiguais. A Amália cantava para os ricos a vida dos remediados, agora são os remediados que cantam a vida dos pobres. Querida mãe, querido pai então que tal?
Os filhos já não voltam para o Natal, como cantava Rui Veloso e os Rio Grande estão fechados, com eles, em casa, desde a Páscoa. Presos com medo da peste. Aquela que já lhes levou um terço do vencimento nos casos com sorte, não lhes renovou o contrato, nem os deixou casar. Só morrer sozinho continuou permitido.
Os jovens voltam para os empregos, de marmita à tiracolo, como os avós iam para as obras. Sabem menos do que eles. Aos sete, não aprenderam a ler. A escola fechou e o senhor ministro pôs tudo na TV lá de casa, esquecendo-se que as famílias grandes ou são ricas e não precisam de nada, ou são pobres e falta-lhes mesmo tudo. A começar na renda da casa com mais de três quartos. E computadores para mais de seis mãos.
Os miúdos não gostam do poder. Querem dar cabo dele como o Ventura e a Catarina. Lembram-se lá do Guterres ou da entrada no euro. Não percebem para que serve a Europa. Não conhecem a Guerra. Esqueceram as ditaduras. Parecem ter saudades dos loucos autoritários. Aprendem a falar chinês que o futuro já não está no tio da América. Não importa estudar, mas fazer-se à vida. As escolas ficaram fechadas tempo demais. Perderam-lhe o gosto. Um ano é tempo suficiente para não ter amigos. Afogam no álcool a fealdade dos espaços. Quem não vive na corte não vive em lado nenhum, e a corte é demasiado cara para viver. A inflação desceu, mas a vida ficou cara e o fim do mês está longe.
Os mais pequenos não têm avós para ficar. De repente, parece que os namorados se batem e os pais se matam. Também, mesmo que tivessem avós, não ficavam. Os avós estão presos numas casas onde o tempo parou a meio de março. Deixam-nos morrer antes de tempo. Os amigos, confinados, a virar-nos a cara. Estávamos finalmente a acreditar e fomo-nos deitar de sorriso nos lábios. E de manhã fomos atacados por um medo estranho de nos transformarmos na Espanha, ou na Itália, onde os mortos já se acumulavam sozinhos nos hospitais feitos morgues. Sofremos um tsunami que não nos deu sequer tempo para ver a água descer antes de crescer. Ficámos logo submersos.
Estava tudo milagrosamente controlado. Os partidos mais inesperados davam-se bem. Não havia maioria, mas havia Governo e Presidente. E uma oposição cordata e teatral. Pela primeira vez em democracia havia excedente orçamental e o turismo valia quase 15% de um Produto Interno em que as exportações cresciam e estavam quase a conseguir atingir a metade que Santos Pereira prometera tantos anos antes, coberto do ridículo que mata, por antecipação, os que sonham alto e ninguém leva a sério. O desemprego descia por causa do turismo. A movida movia até a pasmaceira do Porto. E o Porto invejava a movida alentejana do turismo rural. Em janeiro, éramos pela primeira vez em tantos anos outra vez felizes.
No segundo trimestre nem Páscoa, nem turismo rural, nem gastronomia. Nem pensionistas alemães e britânicos no Algarve, com descontos de IRS nas pensões. Desapareceram os angolanos e os brasileiros da Avenida. Os franceses fugiram do Chiado.
Em que estado deixou a Covid esta Nação que foi preciso ir a correr buscar o dossier da alta velocidade Lisboa-Porto e o TGV de Porto-Vigo, e a ligação Sines-fronteira, e o novo aeroporto de Lisboa, e os milhões de Bruxelas para cobrir fantasias novas como o sonho do hidrogénio? Quem vai agora ganhar com a segunda vaga do tsunami que corre? Para onde vamos fugir com a Nação neste estado?