24 ago, 2020
Não vale tudo. Não pode valer tudo. O código deontológico dos jornalistas diz expressamente quando é possível gravar, sem autorização da fonte, ou mesmo utilizar as câmaras ocultas e divulgar o seu conteúdo. No seu ponto 4, mesmo de forma bastante soft, é claro: “O jornalista deve utilizar meios leais para obter informações, imagens ou documentos e proibir-se de abusar da boa-fé de quem quer que seja." Costa deve ser tratado como outro qualquer.
Pode admitir-se nalgum caso a revelação de conversas privadas ou gravadas contra vontade? Pode. Bastava, por exemplo, que entrasse em óbvia contradição com o que tinha dito antes na entrevista, mas até nisso, infelizmente, não entra. Não diz o mesmo, mas vai no mesmo sentido. Acentua.
E mesmo quando se admitem exceções para essas gravações não autorizadas elas visam proteger a fonte que com medo legitimo e real de represálias se dispõe a denunciar crimes que não poderiam ser provados ou detetados sem essa denúncia. No mais a confiança entre jornalista e fonte é uma das colunas essenciais do bom jornalismo. E o bom jornalismo é um dos sustentáculos da boa democracia. Como o escrutínio público (do qual Costa cada vez menos gosta!) também o é. A mentira ou manipulação é punível com a divulgação do informador, mas em contrapartida o segredo sobre a sua identidade é protegido até em tribunal.
Quebrar este vínculo de confiança mútua é entrar na terra do vale tudo. A terra em que se entrou este fim de semana com essa sim, “cobarde” divulgação de parte de uma conversa privada entre Costa e os seus entrevistadores do Expresso.
Não estava assim tanta gente presente, nem participou em todo o processo, que não se possa apurar quem divulgou, aquela conversa e é certamente possível punir exemplarmente quem por negligência (na versão mais benigna) ou dolo (na versão mais verosímil) deu a conhecer os comentários de Costa. E o que vale para Costa vale para Catarina, Jerónimo, Ventura, seja quem for…
Os comentários privados do primeiro-ministro são de uma infelicidade extrema, mas nada que justifique nenhuma exceção ao código deontológico até porque quem os dá a conhecer se vê obrigado a colocar legendas nas declarações para que se tornem percetíveis, confirmando assim que se trata de comentários claramente do foro privado.
Quem os ouviu diretamente da boca do primeiro ministro deveria retirar as consequências de avaliação de carácter correspondentes. Nada mais. Costa disse o que quis a quem o estava a ouvir naquele momento, mas não disse a mais ninguém quando o podia dizer. Não quis. Estava no seu direito. O Expresso já lhe pediu desculpas, como pediu aos seus leitores e aos outros profissionais, porque o dano foi coletivo.
Mas ninguém está livre de ser roubado. Mesmo que o roubo se deva a uma negligencia grosseira que deriva do envio de planos de corte (imagens que deveriam ser sem som) enviadas para outras redações com o único objetivo de serem utilizadas para servir de suporte ao resumo em voz “off” de outras partes da entrevista.
O resto, a entrevista em si, sim. Já merecia valente comentário. Pelo conteúdo e pela forma. Costa não mostra apenas o seu desagrado pela existência de um relatório da Ordem dos Médicos. Diz, em defesa de comentários igualmente infelizes (mas sobretudo insensíveis e ignorantes) da ministra do trabalho) coisas que não fazem o menor sentido, como o facto de não caber à Ordem “auditar o Estado”, e ter a Ordem como função um estrito poder “delegado” pelo Executivo. Era só mesmo o que faltava. Imagine-se que em vez de médicos se tratava de juízes.
Como se o escrutínio das condições de exercício profissional da medicina não fosse a principal competência da autorregulação e como se não coubesse a todos nós individual e coletivamente, em democracia, escrutinar todo e qualquer exercício do poder.
Se Marta Temido ordenasse aos médicos de Reguengos que fossem tratar em casa, meia dúzia de pessoas apenas porque eram seus amigos seria isso uma decisão normal ou um abuso intolerável? Pois mandar os médicos de uma unidade de saúde para uma instituição privada sem condições de boa prática médica, em vez de enviar os doentes para as estruturas de saúde normais com condições efetivas de lhes ser prestado muito melhor serviço é, em tudo, comparável. Outra coisa seria não existir outra forma de prestar aqueles cuidados, mas existia, e é esse abuso de poder que a Ordem denuncia. Não se podem por doentes e profissionais em risco, porque sim! Ou porque o delegado de saúde ou autoridade regional acha que essa é uma maneira de lhes prestar cuidados de forma mais discreta.
E esse abuso de poder, essa tendência autoritária em Costa mil vezes percebida é, na entrevista, muito patente no tom usado face à pergunta do jornalista evitando a tentativa deste ir “ao repique” tentando interromper e contra-argumentar com o primeiro ministro.
Costa usa a técnica do Senhor Presidente do Conselho em que se vem lentamente transformando. Sobe o tom de voz, coloca o dedo em riste e corta o assunto pela raiz com um significativo “ponto”. Correspondente ao “e não há mais conversa sobre o assunto” como se coubesse ao poder em si acabar ou não com os assuntos incómodos”.
Não, senhor primeiro ministro. Se quiser não responder está no seu direito, mas não pode impedir-nos de perguntar. Uma, duas, dez vezes se se fizer de surdo como Sócrates, se fingir que não percebe como ele. Repetiremos, as vezes necessárias. Para isso nos tornámos “perguntadores” de coisas incómodas.
De forma a tentar que as coisas mudem ou não fiquem por ali. Ou seja, para evitar que Costa use de forma civilizada e culta a mesma técnica que Bolsonaro usa na sua grosseria sem medida. Um e outro tentam acabar a conversa usando o tom intimidatório e assertivo ou a ameaça boçal do líder brasileiro que não hesita em responder à jornalista incómoda “encho-te essa boca de porrada”.
Nos dois casos e com as devidas - diferenças - Costa não é Bolsonaro, nem Trump, nem nenhum destes líderes - Costa tenta de mansinho e sorriso em riste a mesma coisa. Mas nem isso justifica o vale tudo. Não vale.