07 mai, 2021
Pode um velho político profissional, com quase 50 anos de carreira ininterrupta, e perto de 80 de idade, ainda surpreender?! Sobretudo se o faz debaixo da pesada herança de Trump, uma vergonha universal que quase colocou o país mais poderoso no mundo no papel de idiota “inútil”, para não dizer num dos países mais imprevisíveis e perigosos da cena internacional? Pode. Biden fê-lo esta semana, e mais uma vez conseguiu ultrapassar a Europa num golpe de mestre, voltando a sentar a América, no “topo da mesa” de todas as negociações mundiais.
Pena fazê-lo logo na véspera da Cimeira Social, que podia permitir encerrar em beleza uma presidência portuguesa totalmente obscurecida pela questão pandémica. Se o compromisso social acabasse por ultrapassar as palavras bonitas e estabelecesse pelo menos metas credíveis, atribuindo verbas suficientes, estava salva a honra do convento. Já bastava Portugal, por estes dias, trazer nas primeiras páginas dos jornais nacionais um “case study” de clara violação de tudo o que a Europa devia preconizar. Odemira além do tráfico humano traz à colação a existência de pura exploração esclavagista no país hospedeiro. Não precisava ser tão mau.
Azar de Costa. Injustiça para a Europa. O único continente que até agora, além de ter conseguido vacinar quase 200 milhões de cidadãos, já conseguiu exportar para praticamente o mundo inteiro, outros 200 milhões das mais diversas proveniências.
Hoje, antes mesmo de começar a discutir a 27 alguns dos maiores avanços no chamado 3º Pilar da Europa Social e os Direitos dos Trabalhadores, com o tema agora introduzido pelos Estados Unidos, com a súbita subscrição por parte da administração Biden da velha proposta de “suspensão temporária” de patentes das vacinas contra o Covid, de forma a permitir a maximização da capacidade de produção mundial em todos os países e continentes, a agenda europeia passará para segundo plano. Temo que, tal como na crise do “sofá”, a falta de jeito de Charles Michel, ao aceitar começar a estudar uma posição comum no Porto, seja mais uma vez o tipo de gaffe imperdoável.
Para máxima ironia, mesmo se excluirmos a era Trump, dos movimentos sem máscara aos negacionistas bárbaros da invasão do capitólio e incluindo os quase quatro meses de estado de graça da nova administração, as metas incríveis na vacinação autóctone dos americanos foram até agora conseguidos à custa do mais puro estilo “American First” porque o país não exportou, ao que parece, ao que se sabe, uma única dose mesmo para os vizinhos mais próximos como o Canadá ou o México, para se apresentar agora como assumindo a liderança dos que querem levar a vacina a todo o Planeta. A Europa, pelo menos, é o exemplo contrário.
Além disso, a posição americana não é mais do que um híper-agendamento de uma questão “fulcral para as pessoas” mas da qual, em rigor, nem pode reivindicar a paternidade, porque vem na sequência da reentrada do país como parceiro essencial na OMS. A par da China e da Índia, no quadro da Organização Mundial de Comércio (onde a questão acabará por ter a decisão final!), tem sido até aqui a Organização Mundial de Saúde a fazer eco da possibilidade de acionar desde já uma exceção pela sua congénere comercial “para situações de emergência” no acordo dos direitos de propriedade intelectual (TRIPS).
EUA
Depois do amontoar da pressão por parte de entidad(...)
Resumindo: Ao dizerem que estão abertos à negociação de uma matéria em que os americanos sempre fizeram finca-pé em não ceder (“os direitos de propriedade intelectual dos produtos farmacêuticos”), os Europeus são forçados a escolher, já, o lado do qual vão querer ficar. A França, a Itália e a Espanha vieram antes mesmo de iniciada a cimeira fazer coro com os Estados Unidos mostrando a simpatia pela proposta o facto é que, tal como a Suíça, o Reino Unido e o Japão, a própria Europa, como um todo, nunca defendeu posição muito diferente no quadro da OMS.
Mesmo assim a verdade é que se espera que no Porto, este Sábado, a questão venha a sobrepor-se a decisões concretas na área social, onde muitos pontos (desde o salário mínimo europeu comum – que hoje varia entre pouco mais de 300 euros e os 2 mil e muitos!), na questão do verdadeiro combate à pobreza, exigem um foco comum que está muito longe de gerar unanimidades.
Não por acaso, se especulava, já ontem, com a ausência presencial da chanceler alemã no Porto devido à sua conhecida defesa dos direitos de propriedade intelectual do poderoso lobby industrial farmacêutico alemão. Uma posição que partilha com a sua coligação de origem (CDU/CSU), mas que não é unanime no seu próprio Governo com destaque para o SPD ou os Verdes
Seja como for a mudança da estratégia diplomática americana pós-Trump reforça a ideia de que, afinal, mesmo em pouco mais de 100 dias de posse no cargo, um homem até há pouco conhecido pelo único mérito de “saber fazer pontes” pertencente à ala mais moderada dos Democratas, numa altura em que era preciso piscar o olho aos republicanos anti-Trump e tido como o cinzentão mais conhecido dos Estados Unidos, pode acabar com o anátema de que os políticos são basicamente iguais.
Um número dois por excelência, cujo período áureo começara em 1973 como senador de Delaware , com direito à reforma dourada de oito anos de serviço na vice-presidente de Obama (um dos mais carismáticos líderes mundiais,) ainda por cima com o estigma de “católico”, que todos achavam eleito presidente apenas por ter encontrado em Kamala Harris, da ala mais radical do partido, a vice-presidente ideal para repor em versão feminina o mito obamanista, na versão politicamente mais correta. Pode arregaçar as mangas e partir para o combate.
Esse homem que muitos viam, e faço mea culpa, porque também o julguei assim, apenas como o “mal menor" perante o “péssimo” do passado trumpista, não só consegue surpreender mostrando que a vida (mesmo dos políticos mais vividos e conhecedores do sistema) não acaba aos 80, como até pode começar aí.
Em plena pandemia, com uma crise económica ainda a dar os primeiros passos e os mortos a fazerem parecer menores os problemas dos milhões que “só“ perderam o empregou ou “apenas” mergulharam na pobreza, é bom constatar que, depois da versão colorida da loucura, o mundo é agora empurrado pela força da experiência grisalha de um homem comum.
Kamala até pode vir a suceder-lhe. Mas Biden nunca aceitará o rodapé dos descartáveis. Só temo que uma boa ideia, que levará ainda muito tempo a percorrer o seu caminho, mas fará do mundo um lugar melhor, possa, por questões de agenda, vir a custar o sucesso de uma Cimeira de que a Europa precisava, com caráter de emergência. Vide o cancro de Odemira.