28 out, 2021
E agora? Em 40 anos de jornalismo já vi muita coisa, mas confesso que nunca nada assim. Cai um Orçamento e zás: o PR dissolve o Parlamento. Em rigor houve casos vagamente similares, mas muito vagamente e os tempos eram outros. Bem tinha avisado o Presidente que se a birra entre o PS e os parceiros de esquerda fosse longe demais era isso que acontecia. Aconteceu.
Até ao último segundo esperei aqueles golpes de mágica para jornalista ver: um abstencionista aqui, um desalinhado ali, a Madeira em peso, os Açores a troco de alguns trocos, em última instância umas saídas de sala concertadas, de forma a possibilitar que o texto passasse, na generalidade, e ficasse depois em negociação continuada na especialidade. Havia sempre a possibilidade de um novo queijo limiano. Não existiu.
Para mim desde que a geringonça surgiu nada me espanta, e em rigor a própria geringonça não chegou a surpreender-me. Considerei um cenário tão natural quanto todos os outros. Alertei para isso, em tempo, aqui no programa de análise política, então existente: Conselho de Diretores. Os meus companheiros de painel riram-se da minha ingenuidade. PS, BE e PCP jamais se entenderiam. Entenderam-se.
Afinal eu passei por mais astuta, mas eles é que tinham razão. A Rotura só não aconteceu antes porque havia um papel que Cavaco exigiu para dar aval na primeira legislatura. Findo o papel e apesar do aparente sucesso da maquineta, nos primeiros quatro anos, sem o documento exigido à primeira, o fim veio rápido.
O povo não quis o PS a governar sozinho, mas, aparentemente, mesmo na ausência de uma oposição credível, alternativa e eficaz a nova legislatura estoirou quando ainda nem chegara a meio, e só não foi mais cedo devido à pandemia.
Só não sei quem foi o principal culpado: se a ambição do Bloco, se a falha de cálculo político do PCP, se a arrogância governamental. Costa sofreu o efeito do sapo que inchou, inchou, inchou e, quando já parecia indestrutível, rebentou. Diria que ninguém viu o filme ou pensou no país.
Ontem na entrada para o hemiciclo já se sentia o incómodo. O BE em voz baixinha mostrava-se disponível para tudo, mas não podia já perder a face. Olhava de soslaio para o PCP como quem diz, porque não aprovam vocês que levaram o namoro tão longe. Impávido o PCP confortava-se na confirmação de que PS/PSD nunca tinham deixado de ser “farinha do mesmo saco”, como Jerónimo levou anos e anos a afirmar.
Na rua os vários protestos já estavam em marcha. À direita, Rui Rio sentiu-se ultrapassado por todos os lados e já não arriscava afirmar o que quer que fosse. A Madeira namorada? Por quem? Governo? Presidente? Não sei de nada. Mas há garantias de que não roerá a corda, quer dizer, eles são autónomos, vão defender a Madeira , mas que soubesse não se passava nada. Rangel recebido pelo PR? Outra vez, não sei. Para quê? Bom, já me parece um bocadinho demais, mas, o Presidente pode sempre ouvir quem quer. Facada aqui, facada ali, desta vez Rio parecia ter razão para se vitimizar, e se sentir “picado”. O que na sua gíria muito própria será até bom.
No PSD cada vez se percebe menos quem será o novo líder, no CDS o mesmo, e até no Chega, tão recém-chegado, há lutas pelo poder em plena crise de crescimento. No meio disto ainda há a Iniciativa Liberal a roubar votos a todos. O frentismo de direita, mesmo se tudo correr em termos de prazos, o melhor possível ( entre diretas, congressos programas e campanha ) mais parece estar votado a correr mal.
O PAN, subitamente apareceu coerente e cheio de bom senso a alertar para o chamado bem-comum, interesse da esquerda como um todo e dos portugueses em geral.
Se bastava a abstenção para viabilizar o texto e continuar a negociar até à votação na especialidade porque é que ninguém quis ganhar tempo? Está tudo louco? Apetece subscrever.
Não consigo responder. Escapam-me os motivos e apenas vejo um. Tinham razão os que diziam que, geneticamente, a extrema esquerda sofre da síndrome do escorpião. Era mais forte do que todas as conquistas possíveis e do próprio desejo de alguns em embarcar no comboio do poder, não voltar ao conforto dos partidos de protesto. Enquanto é tempo e se ainda for a tempo. Por mim acho que estão enganados e acabarão reduzidos a metade, e metade até me parece muito.
Idem para o PCP, mas por outras razões, porque sem se criar riqueza não há nada a distribuir e o povo que a cria raramente beneficia dela. Dar a volta a este texto não vai lá com ganhos acidentais. Mas a própria ideologia do PCP não os deixa dar a volta ao texto.
O PS, menos utópico, sabe que qualquer ganho, mesmo pontual, tem limites que não podem ser ultrapassados. Por uma vez, aterrou com os pés na terra e colocou limites ao sonho. A rigidez da despesa de pessoal e a sua engorda estava a passar todas as linhas vermelhas.
Mais 25 mil funcionários públicos em tempos de digitalização, e um aumento de 3,1 por cento nas despesas de pessoal são na Europa dificilmente explicáveis. Um dia ou voltam os limites do défice ou volta a Troika. Desaproveitados os quatro anos que passaram é tarde para imprimir nova estratégia. Navega-se à vista e sem conhecer o mar.
Soma-se um sistema nacional de saúde em colapso (colocado a descoberto logo que se esfumou o brilho do vice-almirante!) e uma escola pública que mais parece uma sanguessuga de dinheiros públicos, uma peneira dos alunos mais desfavorecidos, incapaz de impedir a desmotivação continuada de todos os agentes, o insucesso escolar continuado e agravado pela pandemia a justificar o resvalar no ranking ano a ano. Liderado por um ministro totalmente ideológico, mas sem um mínimo de competência para gerir o sector. E Costa ufano por chefiar pessoalmente todas as pastas do maior Governo de sempre e onde menos ministros governam.
Sem orçamento, a vida continua, com a mesma normalidade com que que Marcelo foi levantar dinheiro ao banco e pagar as suas contas.
Os duodécimos são os mais gordos de sempre devido à pandemia ( conta o que estava inscrito e não o que se executou!). A receita é cobrada na mesma e sem desagravamentos. O PRR vem a fundo perdido e não precisa de mais do que do funcionário para assinar. Daí virá um terço do crescimento previsto. Salário mínimo pode avançar por decreto. Até o aumento de pensões e funcionários a 0,9 etc…podem ser postos em marcha que a despesa prevista para 2021 era generosa q.b.
Mas, se a crise política se vier somar a uma nova fase da crise pandémica, e a ameaça da nova crise energética chegar cedo demais (os protestos por alta de combustíveis são um clássico das crises sociais), falta só uma crise de matérias primas que pode funcionar como motor do regresso da velha inflação, uma súbita alteração da política monetária do Banco Central, e então à nova ameaça de crise geoestratégica e climática mundial, somar a crise política não é uma boa ideia. O multibanco onde foi o presidente mostrar que a vida continua… pode passar a ter menos dinheiro e as pessoas deixarem de poder pagar as contas. Ainda há a crise das moratórias a perda de poder de compra já sentido.
Por causa da falta do Orçamento? Não. Por falta de estratégia de crescimento? Sim. E quem é que tem unhas para tocar essa guitarra que nos falta? Esperemos que Marcelo tenha plena consciência que para além de se dançar “com os que estão na roda” é importante haver quem perceba de música para se poder dançar. Mesmo se a ideia for só cantar em coro é preciso partilhar a letra e fará falta o maestro. Conhecem?