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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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NEM ATEU, NEM FARISEU

A eutanásia da avó

10 fev, 2017 • Opinião de Henrique Raposo


Onde estão os filhos e netos destas pessoas? É assim tão difícil ter um dia da semana destinado à avó? Os putos estão assim tão ocupados com o business plan idealizado pelos pais?

A rua principal do meu bairro está cheia de bancos e cafés apinhados de idosas. Aquelas que se sentam nos bancos costumam estar sozinhas com cães. Aquelas que se sentam nos cafés costumam estar em grupo; muitas vezes, estes grupos são tão silenciosos como tumbas; as senhoras limitam-se a estar, juntam-se como pinguins ao frio.

Quando passo com as minhas filhas, elas olham para nós com ar espantado; sinto-me como o pai dos filmes distópicos que retratam um mundo estéril e onde só existe uma criança viva. É como se as minhas filhas fossem uma raridade absoluta. E sabem qual é o problema? As minhas pequenas são mesmo uma extravagância. Um pai rodeado por duas filhas tornou-se numa espécie em vias de extinção. Em Portugal, temos uma taxa de natalidade de 1.2 bebés por mulher. Ou não há filhos, ou há apenas um por casal. Por outras palavras, a família implodiu. A família não é um gigante com pés de barro, é um gigante já de joelhos e à espera do tal “golpe de misericórdia” invocado pelos defensores da eutanásia.

Quando me sento nas mesas do café, sinto que este colapso familiar é total. Enquanto dou torradas às miúdas, vou ouvindo as conversas das senhoras, que até fazem questão de serem escutadas por estranhos. O padrão do discurso é quase sempre o mesmo: vão falando aos poucos de ninharias como Mário Centeno ou a chuva, até que uma delas dá um murro na mesa, “o meu filho zangou-se comigo” ou “a minha nora é impossível”. Assim que se ouve este primeiro tiro, as outras começam de imediato a fazer as suas queixas, umas por cima das outras, numa algaraviada de ressentimento.

Não querem conversar, querem metralhar desabafos: “não me vêm ver”, “não vejo o meu neto há semanas”, “passaram o ano fora”, “só aparece para ver a SportTv”, “porque é que não têm outro filho, podiam perfeitamente”, etc., etc. Quando a tempestade amaina, olham para mim e para as minhas filhas; algumas não resistem e pedem licença para lhes tocar. Querem sentir o toque de outra pessoa. Ora, onde estão os filhos e netos destas pessoas? É assim tão difícil ter um dia da semana destinado à avó? Os putos estão assim tão ocupados com o business plan idealizado pelos pais? Sim, business plan: às segundas, têm explicações de matemática; às terças, inglês; às quartas, natação; às quintas, talvez mandarim, que é uma língua com saída; às sextas, karaté ou ballet; ao fim-de-semana, têm milhentas actividades e festinhas de anos onde nunca estão velhos. Isto não é um pormenor.

Andamos a matar a figura da “avó”, que não tem espaço nesta sociedade de Facebook, de festinhas de anos temáticas e caríssimas onde só cabem crianças, das viagens turísticas constantes cujos pacotes nunca incluem a velhinha.

A actual imposição da eutanásia é apenas uma consequência lógica desta eutanásia metafórica da figura da “avó” e do “avô”. Se vivem nesta solidão, se nunca passam férias com os netos, se percebem que são um fardo no dia-a-dia, é óbvio que estas senhoras são e serão ainda mais tentadas pela eutanásia. Até porque conhecem um facto que escapa à maioria: a maior parte das mortes ocorre no hospital. Portugal tem uma das taxas mais altas de óbitos em ambiente hospital. Um idoso que morre na sua própria cama é quase tão raro como um pai rodeado por dois filhos. Portanto, as pessoas que estão contra a eutanásia devem preparar o espírito para nova derrota, porque estamos a jogar no campo do adversário.

Durante décadas, à esquerda e à direita, diversas ideologias atacaram a família como célula base da sociedade. O resultado está aí: milhares e milhares de velhos vivem mais devido ao avanço da medicina, mas estes anos extra são um calvário de solidão. Sim, devemos lutar a jusante contra esta tentativa de legalização da eutanásia directa, mas devemos sobretudo centrar atenções no problema que está a montante: a efectiva destruição da família.

Aquelas senhoras não podem continuar a olhar para as minhas filhas com aquele semblante de temor, não podem continuar a ser pinguins cercadas por um gelo criado pelos próprios filhos e netos. Se não tivermos um discurso e uma política para esta eutanásia familiar, a lógica gélida da eutanásia triunfará sem oposição.

Comentários
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  • Maria Natália Areal
    03 abr, 2017 Lisboa 22:44
    Artigo Henrique Raposo "Eutanásia da avó"Assim é que falar! Dar noção clara do que é a família: A super ocupação das crianças muitas e muitas vezes desnecessária e inútil, em vez da convivência indispensável com os pais. Obrigada e não pare por favor!! chttp://rr.sapo.pt/artigo/75740/a_eutanasia_da_avolara do que é família!
  • 17 fev, 2017 18:55
    Obrigada por ser tão, mas tão directo no discurso! Gostei de o ler!
  • Maria Guerra
    17 fev, 2017 Porto 14:52
    Caro Dr. Henrique Raposo, Parabéns pelos seus artigos, como é bom lermos análises produzidas pelo seu pensamento repleto de conhecimento e que o põe ao serviço dos outros, por fruto da sua excelente formação de base, aquilo a que o povo lhe chama: educação de berço. Há muito que acompanho as suas notáveis reflexões, talvez porque sigam a minha linha educacional e ideológica me satisfazem e me ajudam tanto na formação das minhas opiniões. Obrigada e Parabéns pelo que é e como é, mas, essencialmente, quero felicitar os seus Pais por ser um resultado de tudo o que lhe transmitiram de melhor e tão bem soube guardar. interiorizar. Com elevada consideração. Maria Guerra
  • maria
    15 fev, 2017 porto 18:14
    Oh Sr. Henrique Raposo, o sr. tenta manipulador, mas fica-se pela manipulação dos incautos. A sua estorieta de começar com as velhinhas abandonadas para acabar na eutanásia, resumindo, é uma legalização para exterminar os idosos, tipo III Reich, não? É uma falta de respeito para com aqueles que sofrem e que sabem que irá ser assim até ao fim dos seus dias. Acha que isso é viver ? Para eles isso é só dor. Temos o direito de os obrigar a viver assim, quando não é o seu desejo? Por mais dificil que seja colocarmo-nos no lugar do outro , anos de dor insuportável, temos que o tentar. Ou nunca lhe doeu nada no corpo? Agora imagine essa dor permanente e irreversivel durante anos? Não acha que é mais tortura que vida?
  • Vera
    13 fev, 2017 Palmela 16:24
    Por que é que temos que correr atrás dos outros, em coisas que não gostamos? Eles não correm atrás de nós!!! só se for para tirar proveito... 'dou-te um chouriço, se me deres um porco'! Acordem, pessoal...
  • Santos
    13 fev, 2017 Lisboa 14:28
    Quem quiser informação sobre um dos dois países q legislaram e continuam a legislar na Europa,pesquisem na net -Holanda eutanásia idosos e tirem as respetivas conclusões.A realidade consumada e vivida sobrepõe-se á mera discussão teórica.Após consulta pensem e decidam .A roda já existe não precisa de ser inventada.
  • 12 fev, 2017 22:24
    Estamos assim... Não valemos nada para os que muito amamos.
  • ALETO
    12 fev, 2017 Lisboa 21:59
    Alguns comentadores julgam (mal) que a eutanásia é para matar os velhinhos abandonados pelas famílias. Nada mais ridículo.
  • MASQUEGRACINHA
    12 fev, 2017 TERRADOMEIO 19:15
    Ainda sobre o mesmo assunto (avós - e tias, pois claro!), decerto muitos terão reparado, sobretudo antes do fecho das fronteiras terrestres, que entre aquelas massas de refugiados chegados à Europa havia, para lá das crianças, muitos velhos. Alguns tão velhos e incapazes que eram carregados às costas, em braços, em liteiras e cadeiras improvisadas, pelos familiares. Isto após uma viagem muito longa e difícil, às vezes através de montanhas e desertos - e muito dispendiosa por cabeça. E questionei-me: quem é esta gente, que assim aumenta o seu sacrifício por alguém que já pouco viverá? Que Terra Prometida sonharão encontrar, ou de que horrores fugirão, para não quererem deixar ninguém para trás? Que choque sofrerão, ao perceberem que por aqui o seu amor aos seus velhos é entendido, na melhor das hipóteses, como heróico? Quanto tempo demorarão a ser como nós, a aceitar o grande avanço civilizacional dos lares de idosos? Para muitos, talvez nunca: a tendência parece ser isolarem-se e rejeitarem quem os acolheu. Pior: abusarem dos valores de tolerância para imporem a sua intolerância, o que é de todo inaceitável, por estúpido e perigoso. Mas, no caso concreto dos avós, a diferença não parece abonar a nosso favor, e será até talvez um factor importante na tal rejeição e auto-isolamento. No entanto, em teoria, o nosso conceito do comportamento desejável, é idêntico ao deles. Por que não o praticamos, então? Apenas porque somos pessoas mais malévolas e egoístas do que eles?
  • Ângela Veloso
    12 fev, 2017 Lisboa 16:33
    Carminda Damião, uma coisa não tem nada a ver com a outra. O abandono de idosos pelas suas famílias não tem nada a ver com a eutanásia. Esta confusão foi mal lançada pelo medíocre autor Henrique Raposo. Por isso, este é um péssimo artigo que remete leitores, como a Carminda, em autêntica confusão.