05 jan, 2018
Muito boa gente revela desinteresse pela Bíblia, porque parte do preconceito de que as sagradas escrituras são apenas para olhos crentes. Nestas cabeças preconceituosas, a Bíblia é uma mera bula medicinal da missa. É um erro grave.
Revelar desinteresse pela Bíblia é o mesmo que desprezar Shakespeare ou Nietzsche. Aliás, é pior do que desprezar Shakespeare ou Nietzsche, porque a Bíblia não é um livro de um autor, é uma biblioteca de dezenas de autores que resume dois mil anos de pensamento e literatura. E esses dois mil anos impressos naquele papel sedoso continuam a ecoar, continuam a ser o pilar central da nossa cultura. Por outras palavras, não ler a Bíblia é uma automutilação intelectual.
Ter orgulho em dizer que não se lê a Bíblia é o mesmo que dizer
com ar ufano que não se lê a Odisseia ou Hamlet. Com ou sem fé em Cristo, um
leitor sério tem de passar pela Bíblia se quiser compreender a nossa cultura. E
não estou a falar apenas da cultura erudita. A cultura popular ainda hoje é uma
filha dilecta da paisagem e das personagens bíblicas. De Matrix a Harry Potter,
passando pelas sacrossantas Guerra dos Tronos e Guerra das Estrelas, é difícil
encontrar um filme ou série de massas sem os dois pés na simbologia cristã.
Olhe-se, por exemplo, para a Guerra das Estrelas, que tem o seu VIII episódio nos cinemas. Não se compreende esta saga sem a ideia cristã de encarnação, isto é, a noção de que o Criador encarna ou escolhe uma pessoa em concreto, um escolhido, um ungido, que tem sempre um perfil improvável. No episódio I, esse ungido é Anakin Skywalker (futuro Darth Vader), um menino de um planeta remoto e desértico (Tatooine), filho de uma mulher escrava. Anakin é gerado de maneira crística, isto é, não tem pai humano; a mãe dá à luz de forma espontânea este escolhido do Criador (“a Força”). Esta evidente citação bíblica no coração da cultura pop volta a ser evidente no actual recomeço da saga, os episódios VII, “O Despertar da Força” (20015), e VIII, “O Último Jedi”, ainda em exibição. A história centra-se agora em Rey, uma rapariga de outro planeta remoto (Jakku). É ela a escolhida. Na grande cena de “O Despertar da Força” (2015), o velho sabre de luz de Luke Skywalker recusa ir parar às mãos de Kylo Ren. O sabre, o símbolo máximo da liturgia Jedi, escolhe como destino as improváveis mãos de Rey. Tendo em conta que a Força escolhe Rey no final de “O Despertar da Força”, a discussão nos últimos dois anos centrou-se na identidade secreta desta personagem. Quem é ela? É ela filha de Luke da mesma forma que Luke é filho de Anakin? É irmã de Kylo Ren, isto é, filha de Leia Skywalker? A conversa centrou-se assim no pedigree, nos alegados galões genéticos e aristocráticos de Rey. É caso para dizer que os fãs de Guerra das Estrelas (eu incluído) não aprendemos nada; não prestámos atenção à saga e, já agora, aos Evangelhos.
Neste VIII episódio, após novo duelo, Kylo Ren dirige-se a Rey nestes termos: “tu sempre soubeste a verdade sobre os teus pais; eles eram miseráveis sucateiros que te abandonaram, eles venderam-te. Tu não és ninguém nesta história”. Esta é a arrogância aristocrática de quem se julga portador de um pedigree especial, de quem se julga mais perto da verdade e de Deus (Força) devido ao apelido, devido à alegada grandeza que carrega no sangue (Ren é filho de Han Solo e Leia Skywalker, a realeza da Guerra das Estrelas).
Nem de propósito, ainda há dias falei aqui desta soberba. A lógica do discurso de Ren é a lógica do poder terreno e snobe, a lógica que foi destruída por Deus quando colocou o seu filho a encarnar no corpo de uma miserável de um povo miserável e num local miserável. À partida e em teoria, Jesus também não era “ninguém nesta história” . É claro que a escolhida da Força só podia ser “ninguém”. Tal como Anakin, Rey nasce num planeta remoto e miserável, uma Jerusalém sem o poder das cidades imperiais . Tal como Anakin, esta figura crística é uma filha de ninguém, um serva ou escrava destinada a partir as estruturas do poder do seu tempo.
Não ler a Bíblia é não perceber metade do que se passa à nossa volta. E não falo apenas de filmes.