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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

​Guerra das Estrelas: uma história bíblica

05 jan, 2018 • Opinião de Henrique Raposo


De Matrix a Harry Potter, passando pelas sacrossantas Guerra dos Tronos e Guerra das Estrelas, é difícil encontrar um filme ou série de massas sem os dois pés na simbologia cristã.

Muito boa gente revela desinteresse pela Bíblia, porque parte do preconceito de que as sagradas escrituras são apenas para olhos crentes. Nestas cabeças preconceituosas, a Bíblia é uma mera bula medicinal da missa. É um erro grave.

Revelar desinteresse pela Bíblia é o mesmo que desprezar Shakespeare ou Nietzsche. Aliás, é pior do que desprezar Shakespeare ou Nietzsche, porque a Bíblia não é um livro de um autor, é uma biblioteca de dezenas de autores que resume dois mil anos de pensamento e literatura. E esses dois mil anos impressos naquele papel sedoso continuam a ecoar, continuam a ser o pilar central da nossa cultura. Por outras palavras, não ler a Bíblia é uma automutilação intelectual.

Ter orgulho em dizer que não se lê a Bíblia é o mesmo que dizer com ar ufano que não se lê a Odisseia ou Hamlet. Com ou sem fé em Cristo, um leitor sério tem de passar pela Bíblia se quiser compreender a nossa cultura. E não estou a falar apenas da cultura erudita. A cultura popular ainda hoje é uma filha dilecta da paisagem e das personagens bíblicas. De Matrix a Harry Potter, passando pelas sacrossantas Guerra dos Tronos e Guerra das Estrelas, é difícil encontrar um filme ou série de massas sem os dois pés na simbologia cristã.

Olhe-se, por exemplo, para a Guerra das Estrelas, que tem o seu VIII episódio nos cinemas. Não se compreende esta saga sem a ideia cristã de encarnação, isto é, a noção de que o Criador encarna ou escolhe uma pessoa em concreto, um escolhido, um ungido, que tem sempre um perfil improvável. No episódio I, esse ungido é Anakin Skywalker (futuro Darth Vader), um menino de um planeta remoto e desértico (Tatooine), filho de uma mulher escrava. Anakin é gerado de maneira crística, isto é, não tem pai humano; a mãe dá à luz de forma espontânea este escolhido do Criador (“a Força”). Esta evidente citação bíblica no coração da cultura pop volta a ser evidente no actual recomeço da saga, os episódios VII, “O Despertar da Força” (20015), e VIII, “O Último Jedi”, ainda em exibição. A história centra-se agora em Rey, uma rapariga de outro planeta remoto (Jakku). É ela a escolhida. Na grande cena de “O Despertar da Força” (2015), o velho sabre de luz de Luke Skywalker recusa ir parar às mãos de Kylo Ren. O sabre, o símbolo máximo da liturgia Jedi, escolhe como destino as improváveis mãos de Rey. Tendo em conta que a Força escolhe Rey no final de “O Despertar da Força”, a discussão nos últimos dois anos centrou-se na identidade secreta desta personagem. Quem é ela? É ela filha de Luke da mesma forma que Luke é filho de Anakin? É irmã de Kylo Ren, isto é, filha de Leia Skywalker? A conversa centrou-se assim no pedigree, nos alegados galões genéticos e aristocráticos de Rey. É caso para dizer que os fãs de Guerra das Estrelas (eu incluído) não aprendemos nada; não prestámos atenção à saga e, já agora, aos Evangelhos.

Neste VIII episódio, após novo duelo, Kylo Ren dirige-se a Rey nestes termos: “tu sempre soubeste a verdade sobre os teus pais; eles eram miseráveis sucateiros que te abandonaram, eles venderam-te. Tu não és ninguém nesta história”. Esta é a arrogância aristocrática de quem se julga portador de um pedigree especial, de quem se julga mais perto da verdade e de Deus (Força) devido ao apelido, devido à alegada grandeza que carrega no sangue (Ren é filho de Han Solo e Leia Skywalker, a realeza da Guerra das Estrelas).

Nem de propósito, ainda há dias falei aqui desta soberba. A lógica do discurso de Ren é a lógica do poder terreno e snobe, a lógica que foi destruída por Deus quando colocou o seu filho a encarnar no corpo de uma miserável de um povo miserável e num local miserável. À partida e em teoria, Jesus também não era “ninguém nesta história” . É claro que a escolhida da Força só podia ser “ninguém”. Tal como Anakin, Rey nasce num planeta remoto e miserável, uma Jerusalém sem o poder das cidades imperiais . Tal como Anakin, esta figura crística é uma filha de ninguém, um serva ou escrava destinada a partir as estruturas do poder do seu tempo.

Não ler a Bíblia é não perceber metade do que se passa à nossa volta. E não falo apenas de filmes.

Comentários
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  • Fernandn
    15 jan, 2018 Lisboa 15:07
    Sr. Raposo, fica aqui para pensar. É bom ver alguém tão progressista falar de Matrix associado à Bíblia. Agradeço-lhe em nome da comunidade LGBT, uma vez que Matrix é a maior alegoria a transgender. https://www.themarysue.com/decoding-the-transgender-matrix-the-matrix-as-a-transgender-coming-out-story/
  • Filipe
    06 jan, 2018 Lisboa 09:43
    Imaginemos Henrique Raposo a defender esta tese numa universidade, como a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e que o seu orientador de mestrado era o digno professor catedrático José Pedro Serra... Já agora, porque utiliza a expressão «automutilação intelectual», sabendo que esta é uma expressão errada? Será que Henrique Raposo nos toma por burros?
  • Ivan Mateus
    05 jan, 2018 Lisboa 19:32
    Será que se pode comparar a Odisseia ou Hamlet à Bíblia? Se a Bíblia se resume a dois mil anos de pensamento e literatura, quem a escreveu após o primeiro milénio? É preciso ler a Bíblia para entender a sociedade? De facto, não entendo como a Renascença continua a aceitar a convivência de Henrique Raposo no seu espaço de opinião. Será que a Renascença toma os leitores e expectadores por crianças imbecis?
  • mara
    05 jan, 2018 Portugal 18:31
    Caro. Dr Raposo gosto muito dos seus artigos que provocam tantas controvérsias neste espaço, mas que a meu ver são muito inteligentes e bem escritos, continue a fazer as suas criticas no RR e não se converta em bispo da IURD, porque não tem carisma de aldrabão, mas sim de um Homem com H grande seja muito feliz.
  • Alexandre
    05 jan, 2018 Lisboa 13:44
    Li as obras «Os Thibault» de Jean Martin Du Gard, «Os Miseráveis» de Victor Hugo e «D. Quixote de la Mancha» de Cervantes. Li também grande parte da obra camiliana. Mantenho interesse em ler bons autores e bons títulos. Dispenso a Bíblia, uma obra que gera sempre discórdia e até guerra entre os seres humanos.
  • Sergio
    05 jan, 2018 T.Novas 13:36
    Em vez de ler a biblia pode ler qualquer outro livro de fantasia, pois no final será a mesma coisa. Com papas e bolos se enganam o tolos...
  • Marco Marques
    05 jan, 2018 Santarém 12:25
    Começo por dizer que já li a Biblia, e conheço bem todas as referencias pop patentes no texto, especialmente Star Wars, e afirmo desde já que não concordo com esta visão... Passo a explicar: a Bíblia, tendo dezenas de autores e revestida de carácter sagrado, não pode ser vista como um texto literal; muito menos podemos esquecer que os Livros que compõem o Novo Testamento não são os únicos, mas os escolhidos criteriosamente entre dezenas de Evangelhos para se adequarem, não ao papel que Cristo queria para a Humanidade, mas para os fitos de alguns Bispos que quiseram modelar a Sacra Ecclesia aos seus propósitos. E isto leva-me ao próximo ponto: as bases da Igreja Católica foram construídas de modo a assimilar outras religiões (a que chamaram cultos pagões) e onde já existiam os conceitos de energia universal (tipo "a Força"!), Reencarnação e Escolhido/Ungido! Ou seja, se quer falar realmente de cultura, não poderá afirmar que não se pode entender Matrix ou Star Wars sem ler a Bíblia. Deverá antes compreender, que muitas das referencias pop actuais foram beber na fonte de milhares de anos de História Universal, num período tão vasto que pode abarcar desde a humanidade pré faraónica até aos dias de hoje, sem esquecer a influencia das duas grandes guerras. Também não pode esquecer dezenas de culturas e religiões diferentes que do mesmo modo contribuíram para todas a sagas e séries referidas. Ah, não é Leia Skywalker, é Organa Solo. E José, pai de Jesus era Nobre, da casa de David.
  • Joaqim Santos
    05 jan, 2018 Tojal 11:59
    A observação está correta, porém o que o Henrique ignora, é que todos esses eventos tem um fim: ocultar a segunda vinda e definitiva de Jesus à Terra. É bom começar a falar dela, e não ocultá-la. Os sábios de hoje, como os de outros tempos, são espertos para verem e interpretarem se chove ou faz sol, porém ignorantes no que é importante, a salvação da sua alma e a alma dos outros.
  • João Lopes
    05 jan, 2018 Viseu 10:42
    É verdade: «a Bíblia não é um livro de um autor, é uma biblioteca de dezenas de autores que resume dois mil anos de pensamento e literatura. E esses dois mil anos impressos naquele papel sedoso continuam a ecoar, continuam a ser o pilar central da nossa cultura. Por outras palavras, não ler a Bíblia é uma automutilação intelectual».
  • Pedro Silva
    05 jan, 2018 Lisboa 09:59
    É necessário ler a Bíblia para perceber o que se passa à nossa volta? «...não ler a Bíblia é uma automutilação intelectual.»? Acredito que Henrique Raposo terá maior fama convertido em bispo da Igreja Universal do que em crítico de cinema.