02 fev, 2018
Esta histórica escalada de denúncias de assédio sexual mostra um profundo desconforto em relação aos códigos amorais criados pela revolução sexual dos anos 60 e continuados pelos anos 90 de Clinton e Weinstein - os “naughty Nineties”. Como já aqui defendi, a questão é sobretudo masculina porque o agressor é o homem. Porém, o MeToo devia convocar homens e mulheres por igual para uma reflexão sobre aquilo que Zigmunt Bauman apelidou de “Amor Líquido”, um termo feliz para a dispersão e fluidez da vida pós-moderna.
Esta dispersão líquida junta o pior da esquerda com o pior da direita. O pior da esquerda é o culto pós-moderno do “eu”: o indivíduo é uma ilha, é superior e independente em relação a tudo; nenhuma narrativa moral, religiosa, histórica ou política é superior ao “eu”; o indivíduo decide sozinho a grelha moral que avalia o seu próprio comportamento, é jogador e árbitro ao mesmo tempo; tudo é relativo à imanência da vontade pessoal de cada um, não há uma moral transcendente fixa e universal e, por inerência, com jurisprudência sobre cada um de nós. O pior da direita é a glorificação do mercado e do papel da pessoa enquanto consumidor em detrimento de outros papéis como o de cidadão (que não remete para o mercado, mas sim para a república) ou pai (que não remete para o mercado, mas sim para a família). Uma coisa é defender que a economia de mercado é a melhor solução económica (um debate fechado). Outra coisa, bem diferente, é transformar o mercado no árbitro moral da sociedade: se o mercado vai num certo sentido, então é porque esse sentido é Bom ou Justo em si mesmo! Esta sacralização do mercado não faz sentido. O mercado só decide o que é rentável ou comprável no campo amoral da economia, não decide o que está certo ou errado no campo da moral. Seja como for, este erro tornou a direita muito porosa à lógica da esquerda pós-moderna e vice-versa: o “eu” é um ser absoluto que não aceita nenhum critério exterior ao seu apetite pessoal.
Esta tenaz chegou ao amor, às relações entre sexos, aos namoros, ao casamento, visto que as pessoas passaram a ver no amor um bem de consumo como outro qualquer; esperam do amor aquilo que esperam de um iphone: que se adapte aos seus apetites, que seja um eco ou uma bolha. Ou seja, os Tinder, as taxas de divórcio altíssimas, os milhões de homens e sobretudo de mulheres que não conseguem “arranjar ninguém” para um relacionamento sério são assim o resultado desta concepção umbiguista ou consumista do amor: querem o namoro ou casamento enquanto reflexo passivo dos seus apetites ou sonhos, querem que a relação seja uma metralhadora de “likes”, querem que a ligação amorosa seja um pedaço de barro que se vai moldando. Sucede que o barro somos nós; somos nós que nos moldamos ao amor, e não o inverso. Manter um namoro ou casamento é um treino constante no “unlike”, porque temos de fazer coisas de que não gostamos, porque temos de nos sacrificar. Como diz Samuel Úria, grande cantor do amor não líquido, “eu diminuo” porque “eu seguro”. Amar é segurar o outro e, nesse sentido, há que diminuir o nosso ego. A relação, namoro ou casamento, não existe para nos dar felicidade imediata e epidérmica. O grande equívoco é portanto o desejo de trazer para o namoro ou casamento o pacote de felicidade naturalmente egoísta da vida de solteiro. Daí nasce a sensação de que o namoro ou casamento é um prisão. Daí nasce o amor líquido, o divórcio fácil, o tinder, a constante insatisfação expressa na frase “não encontro ninguém”. O que as pessoas não encontram, parece-me, é a humildade para perceber que têm de criar outro conceito de felicidade de braço dado com alguém. Este conceito de felicidade é diferente ou, se calhar, não é mesmo felicidade, é outra coisa mais profunda para a qual ainda não tenho um nome, embora saiba que esta coisa sem nome é o próprio pilar da civilização onde ainda vivemos.
Aqueles e aquelas que reagem contra o #MeToo estão a defender o amor líquido, isto é, querem continuar a ver o amor pela lente dos direitos do consumidor; estão desconfiados com o fim da revolução sexual imposto pelo MeToo, porque tratam o sexo, o namoro, o “date” e até o casamento como se tivessem num buffet ou numa loja: querem novidades e variedade permanentes; rejeitam logo à partida as noções de estabilidade, renúncia e sacrifício que estão na base do namoro e do casamento, isto é, rejeitam a ideia de lar. Ora, estas pessoas deviam ter coragem para reparar numa coisa: se a montante recusa os conceitos de renúncia e a de lar, a jusante esta noção mercantilista de amor promove passiva ou activamente a cultura do assédio. Sim, promove. Grande parte dos homens olha para a mulher como um bem de consumo e, portanto, nem sequer compreende o alcance do “não”; para este código de masculinidade criado na cultura pornográfica dos anos 60 e confirmado pelos anos 90 de Bill Clinton, ouvir um “não” de uma mulher sexy faz tanto sentido como ouvir um “não” de um iphone. Se és sexy porque é que não queres? Se estás assim tão produzida porque é que não queres? Sim, é verdade que muitas mulheres também vêem assim os homens. Sucede que a objetificação sexual do homem não tem as consequências da objetificação da mulher. A primeira origina “bad sex”, a segunda legitima a “rape culture”. Como diz Margaret Atwood, o homem tem medo de ser gozado pela mulher; a mulher tem medo de ser violada ou morta pelo homem.