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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

MeToo vs. Amor Líquido

02 fev, 2018 • Opinião de Henrique Raposo


As pessoas passaram a ver no amor um bem de consumo como outro qualquer; esperam do amor aquilo que esperam de um iphone: que se adapte aos seus apetites, que seja um eco ou uma bolha.

Esta histórica escalada de denúncias de assédio sexual mostra um profundo desconforto em relação aos códigos amorais criados pela revolução sexual dos anos 60 e continuados pelos anos 90 de Clinton e Weinstein - os “naughty Nineties”. Como já aqui defendi, a questão é sobretudo masculina porque o agressor é o homem. Porém, o MeToo devia convocar homens e mulheres por igual para uma reflexão sobre aquilo que Zigmunt Bauman apelidou de “Amor Líquido”, um termo feliz para a dispersão e fluidez da vida pós-moderna.

Esta dispersão líquida junta o pior da esquerda com o pior da direita. O pior da esquerda é o culto pós-moderno do “eu”: o indivíduo é uma ilha, é superior e independente em relação a tudo; nenhuma narrativa moral, religiosa, histórica ou política é superior ao “eu”; o indivíduo decide sozinho a grelha moral que avalia o seu próprio comportamento, é jogador e árbitro ao mesmo tempo; tudo é relativo à imanência da vontade pessoal de cada um, não há uma moral transcendente fixa e universal e, por inerência, com jurisprudência sobre cada um de nós. O pior da direita é a glorificação do mercado e do papel da pessoa enquanto consumidor em detrimento de outros papéis como o de cidadão (que não remete para o mercado, mas sim para a república) ou pai (que não remete para o mercado, mas sim para a família). Uma coisa é defender que a economia de mercado é a melhor solução económica (um debate fechado). Outra coisa, bem diferente, é transformar o mercado no árbitro moral da sociedade: se o mercado vai num certo sentido, então é porque esse sentido é Bom ou Justo em si mesmo! Esta sacralização do mercado não faz sentido. O mercado só decide o que é rentável ou comprável no campo amoral da economia, não decide o que está certo ou errado no campo da moral. Seja como for, este erro tornou a direita muito porosa à lógica da esquerda pós-moderna e vice-versa: o “eu” é um ser absoluto que não aceita nenhum critério exterior ao seu apetite pessoal.

Esta tenaz chegou ao amor, às relações entre sexos, aos namoros, ao casamento, visto que as pessoas passaram a ver no amor um bem de consumo como outro qualquer; esperam do amor aquilo que esperam de um iphone: que se adapte aos seus apetites, que seja um eco ou uma bolha. Ou seja, os Tinder, as taxas de divórcio altíssimas, os milhões de homens e sobretudo de mulheres que não conseguem “arranjar ninguém” para um relacionamento sério são assim o resultado desta concepção umbiguista ou consumista do amor: querem o namoro ou casamento enquanto reflexo passivo dos seus apetites ou sonhos, querem que a relação seja uma metralhadora de “likes”, querem que a ligação amorosa seja um pedaço de barro que se vai moldando. Sucede que o barro somos nós; somos nós que nos moldamos ao amor, e não o inverso. Manter um namoro ou casamento é um treino constante no “unlike”, porque temos de fazer coisas de que não gostamos, porque temos de nos sacrificar. Como diz Samuel Úria, grande cantor do amor não líquido, “eu diminuo” porque “eu seguro”. Amar é segurar o outro e, nesse sentido, há que diminuir o nosso ego. A relação, namoro ou casamento, não existe para nos dar felicidade imediata e epidérmica. O grande equívoco é portanto o desejo de trazer para o namoro ou casamento o pacote de felicidade naturalmente egoísta da vida de solteiro. Daí nasce a sensação de que o namoro ou casamento é um prisão. Daí nasce o amor líquido, o divórcio fácil, o tinder, a constante insatisfação expressa na frase “não encontro ninguém”. O que as pessoas não encontram, parece-me, é a humildade para perceber que têm de criar outro conceito de felicidade de braço dado com alguém. Este conceito de felicidade é diferente ou, se calhar, não é mesmo felicidade, é outra coisa mais profunda para a qual ainda não tenho um nome, embora saiba que esta coisa sem nome é o próprio pilar da civilização onde ainda vivemos.

Aqueles e aquelas que reagem contra o #MeToo estão a defender o amor líquido, isto é, querem continuar a ver o amor pela lente dos direitos do consumidor; estão desconfiados com o fim da revolução sexual imposto pelo MeToo, porque tratam o sexo, o namoro, o “date” e até o casamento como se tivessem num buffet ou numa loja: querem novidades e variedade permanentes; rejeitam logo à partida as noções de estabilidade, renúncia e sacrifício que estão na base do namoro e do casamento, isto é, rejeitam a ideia de lar. Ora, estas pessoas deviam ter coragem para reparar numa coisa: se a montante recusa os conceitos de renúncia e a de lar, a jusante esta noção mercantilista de amor promove passiva ou activamente a cultura do assédio. Sim, promove. Grande parte dos homens olha para a mulher como um bem de consumo e, portanto, nem sequer compreende o alcance do “não”; para este código de masculinidade criado na cultura pornográfica dos anos 60 e confirmado pelos anos 90 de Bill Clinton, ouvir um “não” de uma mulher sexy faz tanto sentido como ouvir um “não” de um iphone. Se és sexy porque é que não queres? Se estás assim tão produzida porque é que não queres? Sim, é verdade que muitas mulheres também vêem assim os homens. Sucede que a objetificação sexual do homem não tem as consequências da objetificação da mulher. A primeira origina “bad sex”, a segunda legitima a “rape culture”. Como diz Margaret Atwood, o homem tem medo de ser gozado pela mulher; a mulher tem medo de ser violada ou morta pelo homem.

Comentários
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  • Vera
    04 fev, 2018 Palmela 15:09
    O que faz uma mulher sentada nos rochedos a olhar o mar? de certeza que não está à espera, que 'Zeus' lhe venha dizer que a vida é feita de bons e maus momentos! disso ela já sabe! se a sociedade nos acolhe tudo brilha à nossa volta! se a sociedade nos enxota, não há nada que nos salve de tristes situações! o homem está integrado na sociedade e tem que tirar partido dela, se não conseguir, a mulher para ele é um estorvo! A mulher com o seu instinto de mãe, procura sempre uma oportunidade para ser feliz, mas ou se torna escrava, ou manda, como se aquele que vive a seu lado, fosse um filho que ela adoptou e quer por força modificá-lo!!! e é aí que começa a desconfiança e a discórdia, que são produtos de uma sociedade insuficiente! O amor é magia, que só existe por acaso! Nunca ouviram dizer que: "amigos, amigos, negócios à parte"? Pois é!... A vida é um jogo, em que uns perdem, outros ganham e outros nem perdem nem ganham, pensam!!!
  • ADISAN
    03 fev, 2018 Mealhada 14:53
    Mais um excelente artigo de Henrique Raposo que vale a pena ler. É sobejamente conhecido que nem toda a gente gosta das suas considerações (e ele sabe-o muito bem). Mas é exactamente por isso que vale a pena lermos e admirarmos a coragem que tem para abordar temas de certo modo melindrosos. E não me refiro só ao tema de hoje em exclusivo, mas igualmente a muitos outros que tem publicado. Obrigado HENRIQUE RAPOSO. Continue que o mundo de hoje bem precisa de HOMENS (Humanos) como o Senhor! Bem haja!
  • António Costa
    02 fev, 2018 Cacém 15:43
    Evidentemente que o "problema" do #MeToo é considerar o homem, o agressor. O agressor é apenas quem tem poder para agredir. Poder para Agredir. Apenas isso. Filme de Ficção Cientifica : "Escolhemos um ser do sexo feminino por ser mais calmo e mais dócil " Resposta: "O Sr. não tem saído muito ultimamente, pois não?" A agressão é transversal: Vai da relação entre os sexos à politica internacional. Excesso de Poder de um dos lados. Já agora, Catarina a Grande, diz-lhe alguma coisa?
  • Amora Bruegas
    02 fev, 2018 Fig Foz 14:39
    Muito bom artigo. De facto, há uma grande hipocrisia da parte dos dos defensores do "amor-livre", irresponsável, defensores da pornografia nomeadamente em livros escolares. Depois, não querem assumir as consequências e ainda têm o descaramento de empurrar responsabilidades para os outros, nomeadamente os que são contra. É uma pena a hipocrisia não matar!
  • João Lopes
    02 fev, 2018 Viseu 11:17
    Excelente análise de HR. É verdade: « O que as pessoas não encontram,… é a humildade para perceber que têm de criar outro conceito de felicidade de braço dado com alguém». As pessoas «rejeitam logo à partida as noções de estabilidade, renúncia e sacrifício que estão na base do namoro e do casamento, isto é, rejeitam a ideia de lar». Diz-se que o ser humano foi criado para ser feliz…mas nem todos os caminhos levam à felicidade. Para se ser feliz, entre outras coisas, é preciso pensar nos outros, no bem dos outros, lutando contra o próprio egoísmo… e isso não é fácil!